José Moreira da Cunha integra missões diplomáticas há mais de quatro décadas – foi Embaixador de Portugal no Canadá, Argélia e Irão. Considera a carreira diplomática como “um projeto de vida” coletivo, estando a sua família também envolvida. Atualmente, é o enviado especial de Portugal ao Sahel, sendo responsável por acompanhar “a grave crise” que afeta os países desta região.
De Diogo Alexandre Carapinha e João Henriques
O Senhor Embaixador tem um currículo invejável, marcado por experiências em contextos díspares e bastante complexos. Nestes mais de 40 anos a representar Portugal pelo mundo fora, o que mais destaca no seu percurso diplomático?
Houve dois princípios que apliquei – e que ainda aplico –, ao longo da minha carreira: o primeiro foi o de me esforçar e de contribuir para que eu e a minha família, que sempre me acompanhou, fôssemos felizes, independentemente de onde estivéssemos a viver, contribuindo para uma rápida adaptação de todos nós ao novo lugar; e, em segundo, de nunca – mas mesmo nunca – subestimar os interlocutores que tenho pela frente. Estas duas regras básicas têm-me acompanhado sempre. Entendo a carreira diplomática como um projeto de vida que envolve toda a família de um funcionário.
Foi assim que aprendi a valorizar todos os postos em que estive, com condições de trabalho e com realidades culturais totalmente diferentes, e a considerá-los como desafios e uma oportunidade única de enriquecimento pessoal. E esse é o encanto da profissão de diplomata, nunca esquecendo de que, acima de tudo, estou colocado numa capital, em representação de Portugal.
Focando-nos em duas passagens que o Senhor Embaixador experienciou, em concreto: as missões em Teerão e Argel. Que especificidades destaca, pela sua relevância e pela sua peculiaridade, nestes dois momentos, tendo em consideração o papel muito importante que desempenhou, em momentos particularmente difíceis… (episódios de 2009, em Teerão, e de 2013, em Argel)?
Nos dois países que referiu, com culturas e práxis distintas na relação com o Islão, pude constatar que o mundo islâmico é fascinante, tanto nas convicções mais profundas de fé e de justiça quanto na vivência de tolerância das suas populações. Tanto no Irão quanto na Argélia, de facto, nunca me senti discriminado; antes pelo contrário, sempre recebi manifestações de grande respeito.
O problema reside em grupos que utilizam a religião e a cultura para fundamentar frustrações ou para projetar protagonismos políticos radicais. A História mostra-nos que os excessos existiram em todos os credos.
Assistimos, sobretudo com a presidência de Donald Trump, a uma escalada de tensão muito perigosa, entre Washington e Teerão, envolvendo também outros países do Médio Oriente. Conhecendo tão bem a nação iraniana, considerou, em determinada altura, que os dois países iriam iniciar uma guerra sem precedentes?
O diálogo é sempre o melhor caminho para superar divergências, independentemente da gravidade das consequências que as tensões existentes possam potenciar. Acontece que, por vezes, a intransigência das posições assumidas dificulta o diálogo, e, em termos de opinião pública, impede que sejam dados passos que possam ser entendidos como uma fragilidade ou um recuo. Para uma negociação, deve partir-se do princípio de que, em algum momento, será necessário fazer concessões para se chegar a um denominador comum. Este chavão da diplomacia constitui-se como uma regra que se aplica a todos os países e nunca é tarde para se ter a coragem de nos aproximarmos daqueles de quem divergirmos.
É do interesse de todos – incluindo dos países do Golfo e do Médio Oriente – que se verifique, quanto antes, uma aproximação entre Washington e Teerão e se alivie a crispação existente. Por vezes, a mudança de protagonistas ajuda a acelerar as respostas. Esperemos que assim seja.
Acredita que essa tensão, entre as duas nações, ficará mais enfraquecida no pós-pandemia, atendendo ao ritmo, crescente e perigoso, a que se estava a desenrolar?
A realidade terrível que nos trouxe a pandemia, e cujas consequências definitivas não foram, ainda, devidamente calculadas, deve fazer-nos pensar na forma de olhar a vida e de projetar o futuro. O momento atual é de aproximação e de solidariedade, e caberá à História, em tempo que não é o nosso, fazer o inevitável julgamento.
“O multilateralismo é, e será cada vez mais, a forma de se ultrapassarem divergências e de se afirmarem políticas fundamentais”
O Senhor Embaixador licenciou-se em História e doutorou-se em Ciência Política. Nesse prisma, e juntando a ele toda a sua larga e a sua valiosa experiência diplomática, revê-se no argumento de Samuel Huntington, quando o mesmo refere que os principais conflitos mundiais futuros terão como base divergências culturais e religiosas?
Concordo, plenamente, com Samuel Huntington. Basta olhar para a génese dos conflitos espalhados pelo mundo. Para contrariar essa visão, destaco a dimensão e a coragem da visita histórica realizada, recentemente, ao Iraque, pelo Papa Francisco, bem como dos encontros que manteve nesse país com líderes islâmicos em lugares conhecidos, particularmente fustigados pela intolerância.
Acredito no contributo da Aliança das Civilizações – que teve o presidente Jorge Sampaio como Alto Representante – assim como no de outras organizações que dependem, ou não, das Nações Unidas, além de todas iniciativas que promovam o conhecimento e a aproximação entre os povos. Só dessa forma é possível ultrapassar preconceitos antigos – e sem sentido –, e que proliferam um pouco por todo o lado, e superar divergências.
Que papel considera que a Europa deve ter enquanto ator político, num mundo geopoliticamente distinto e cada vez mais complexo, quando comparado com o de há uns anos?
Cada vez mais a Europa representa um espaço de paz, de democracia, de progresso económico e de circulação de pessoas, afirmando-se como um elemento internacional decisivo de moderação e de equilíbrio. Analise-se, por exemplo, a resposta política da UE à pandemia, em termos de saúde pública, e pós-pandemia, disponibilizando recursos para repor os níveis de desenvolvimento, ou, ainda, o empenho e a influência na concertação de uma estratégia global de combate às alterações climáticas. Veja-se, igualmente, o contributo dado à resolução de conflitos – como aquele que acompanho, o do Sahel, entre outros.
Atendendo às especificidades do contexto atual, em vários aspetos, muitos deles já referidos pelo Senhor Embaixador, considera que o multilateralismo é uma corrente que vigorará nas próximas décadas?
O multilateralismo é, e será cada vez mais, a forma de se ultrapassarem divergências e de se afirmarem políticas fundamentais, tais como o respeito pela democracia, pelos direitos humanos e pelas liberdades, assim como aspetos ambientais ou do desenvolvimento sustentável. Claro que haverá sempre espaço para o relacionamento bilateral entre países com partilhas históricas e culturais ou com interesses específicos e afinidades geoestratégicas, mas as grandes questões, tal como acontece já atualmente, terão de ser abordadas num ambiente mais alargado.
Por fim, mas não menos importante, o Senhor Embaixador foi nomeado Representante Especial para acompanhar a situação, nas várias dimensões, dos países da região do SAHEL. Há 4 anos, o Embaixador Ángel Losada disse, em entrevista ao Público, que o SAHEL, e passo a citar, “concentra todas as crises do mundo”. Portanto, sendo esta zona muito sensível, nomeadamente a nível do terrorismo, conflitos, crime organizado, corrupção, …, o que é que nos pode adiantar sobre o atual contexto desta região e quais são os desafios e metas a cumprir?
Concordo, cabalmente, com a análise do Embaixador Ángel Losada sobre a grave crise que afeta o Sahel. Os países da região, que integram o G5 (Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Níger e Chade), estão conscientes dessa realidade e esperam que a comunidade internacional – e a União Europeia, em particular – contribua para resolver a situação que enfrentam. A luta contra o terrorismo aparece no topo da lista de problemas do Sahel, mas existem outros igualmente complexos, ligados às divergências étnicas, ao desenvolvimento e a questões do ambiente.
O Embaixador Losada e a União Europeia e os seus estados membros – e em que incluo Portugal – têm feito um esforço considerável de ajuda. E isso continuará a acontecer no futuro, tal como se encontra consagrado nos documentos do Conselho da UE.