Dez anos depois: o travo agridoce das Primaveras Árabes

Pouco mais de uma década depois do que ficou conhecido como “Primavera(s) árabe(s)”, o balanço do movimento sociopolítico que então emergiu continua com sabor agridoce. Na verdade, foram diversas as realidades nacionais que compuseram o movimento então considerado como politicamente reformador.

Iniciado através de uma revolta social na Tunísia, em Dezembro de 2010, as “primaveras” tiveram origens e resultados muito diversos e, volvido o tempo necessário para um balanço, nenhum dos movimentos reformadores de fundo foi bem-sucedido nas várias vertentes que pretendia reformar.

Assim, na pioneira Tunísia, a “Revolução do Jasmin”, que se seguiu ao levantamento popular, pôs de facto termo ao regime autoritário de Ben Ali, abrindo o sistema político a partidos de esquerda e islamistas então interditos. No entanto, abriu também o país à instabilidade crónica, com mais de 200 partidos políticos reconhecidos, e promoveu a ingovernabilidade com a nomeação e dissolução de sucessivos governos e a perda de credibilidade dos políticos. Anteriormente destacada como o centro financeiro regional e dotada de um sector industrial, agroindustrial e turístico fortes, a economia tunisina afundou face ao recuo do investimento estrangeiro, à quebra da produção e ao consequente aumento do desemprego. A insegurança e o terrorismo, anteriormente limitadas, passaram a ser parte do quotidiano tunisino e foram notórios alguns recuos em matéria de laicidade do Estado, uma das bandeiras da “moderação” tunisina desde o presidente Bourguiba. Apesar do longo “período revolucionário em curso”, o caso tunisino foi o único processo de reforma revolucionária que se pode considerar terminada.

No Egipto, a “Primavera”, que acabou por depor o presidente Hosni Mubarak, deu origem a uma sociedade dividida, onde de um lado surgia a Irmandade Muçulmana, de inspiração fundamentalista, e de outro a tradição secular egípcia, composta pelos níveis sociais da classe média e média alta. A eleição do líder da Irmandade Mohamed Morsi, em 2012, e o caos instalado no país levou à intervenção militar liderada pelo actual presidente Abdel Fattah El-Sisi, próximo de Mubarak, e que assegurou a transição até às primeiras eleições livres. O contragolpe, que acabou por ser apoiado pela maioria dos 90 milhões de egípcios, acabou por funcionar como uma “correcção” da primavera política, mas salvou a catástrofe económica e eventual guerra civil que se começavam a formar.

Na Líbia, há muito sob a tensão entre o leste (Cirenaica) e o oeste (Tripolitânia), o movimento “primaveril” ofereceu o contexto ideal para o derrube do regime de Muammar Kadhafi e a sua própria morte, em Outubro de 2011 – ao contrário da maioria dos restantes países –, surgindo da queda do regime um país partido e em guerra civil, arrasado por bombardeamentos constantes. A economia, dependente do sector petrolífero, afundou com a quebra de produção para menos de metade, provocando vagas de refugiados em direcção aos países vizinhos. Nenhuma das iniciativas de paz teve até agora efeitos duradouros.

Na Síria, o levantamento popular foi instrumentalizado pelo ISIS, com origem na nebulosa fundamentalista da Al Qaeda, que iniciou uma guerra civil através de voluntários e financiamentos externos, ocupando a região norte do país onde formou o seu “califado”. O regime de Bashar Al Assad manteve-se no poder após uma guerra civil que destruiu aquele que foi em tempos proclamado internacionalmente como um dos exemplos de desenvolvimento e de progresso no Médio Oriente, sob a tutela política do Baas (socialismo de inspiração islâmica). Hoje, é um país igualmente destruído e em fase de lenta reconstrução.

Outros palcos como o Iémen ou o Bahrein sofreram igualmente processos de reforma, com graus de reforma e de repressão variáveis, enquanto países como Marrocos se anteciparam, iniciando as suas próprias reformas políticas através da alteração do papel do Rei e de reformas constitucionais parciais.

A natureza diversa das “primaveras árabes” teve como único denominador comum a emergência de movimentos populares de protesto e crises económicas e sociais. A evolução política divergiu entre si e, no final do dia, os processos revolucionários trouxeram novos actores, mas não alteraram de forma substancial a estrutura do poder. Quando tal aconteceu, criaram-se cenários de ingovernabilidade que ainda hoje bloqueiam a decisão e a reforma política.

Dada a complexidade e diversidade do mundo árabe, o movimento das Primaveras árabes ensinou-nos que a reforma acelerada e abrupta raramente favorece a estabilidade e o desenvolvimento. Cabe aos povos árabes encontrar as fórmulas apropriadas para primaveras mais graduais, encetando reformas paulatinas que dissuadam rupturas abruptas e destrutivas.

Pedro Esteves,

Partner do Africa Monitor, analista, membro do Conselho Consultivo do Observatório do Mundo Islâmico