A actual política externa da Turquia

TEMA: A política externa da Turquia e a relação de forças no plano regional e internacional.

RESUMO

Sobretudo ao longo das últimas duas décadas, num contexto de crescente isolamento internacional, a política externa da Turquia tem conhecido significativas mudanças, através da materialização de uma nova estratégia que visa uma pragmática abordagem a novos parceiros, ao mesmo tempo que procura redinamizar antigas alianças. É disso exemplo, a sua reaproximação à Rússia, numa altura em que o propósito de afastar Bashar al-Assad da liderança síria parece ter falhado. De igual modo, a atitude aparentemente contemporizadora face a outros actores regionais, revela a necessidade de estabelecer pontes que garantam um futuro geopolítico de contornos hegemónicos.

ANÁLISE

Com o final da Segunda Guerra Mundial, a Turquia encetaria múltiplos contactos com o objectivo de estreitar relações com as potências ocidentais. Nesse sentido, importantes passos seriam dados, logo em 1945, com a adesão à Organização das Nações Unidas (ONU), e, em 1961, à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), assumindo, em ambos os casos, o estatuto de membro-fundador. Com o decorrer dos anos, a Turquia passaria a integrar outros importantes organismos internacionais, como é o caso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), à qual aderiria, em 1952. Mais recentemente, tem procurado reforçar a sua presença no Médio Oriente, no Cáucaso e nos Balcãs, sem nunca ter perdido de vista a possibilidade de vir a integrar a União Europeia. Até agora, sem sucesso, devido a inúmeros factores.

Já no início deste novo milénio, sob as orientações de uma nova liderança, iniciada em 2002, a diplomacia turca, sempre no propósito de se afirmar como interlocutor político válido, tem envidado esforços conducentes ao estabelecimento ou consolidação de laços de amizade com vários países do continente africano, tendo havido, nesse sentido, uma Cimeira Turquia-África, em 2008. Ao longo dos últimos anos, a Turquia tem vindo a marcar a sua presença neste continente, com o estabelecimento de representações diplomáticas em praticamente todos os países.

As relações da Turquia com países da Ásia Central têm vindo a conhecer enorme desenvolvimento, tanto no domínio económico como político, onde as de natureza cultural não têm sido esquecidas.

Também no Continente Americano, são inúmeras as representações diplomáticas turcas. De facto, no domínio da política externa, é manifesto o seu enorme empreendedorismo, mostrando saber dar resposta ao crescente interesse que tem vindo a ser demonstrado por diferentes actores estatais, embora, por vezes, pareça ser pouco claro o adequado controlo das suas prioridades.

Relativamente ao seu posicionamento estratégico e às questões de segurança, a liderança turca tem mostrado forte reacção às constantes ameaças que resultam da presença de grupos hostis radicados a norte do território sírio, num momento em que as relações com os Estados Unidos têm conhecido uma considerável deterioração, agravadas recentemente, pela questão arménia, e pelas ameaças de destruição da economia turca, tornadas públicas pelo presidente Donald Trump.

No actual contexto, são, pois, colocadas à Turquia novas realidades, tanto de natureza geopolítica, marcada por uma importante perda de influência, sobretudo após o colapso da União Soviética, como no domínio da geoeconomia. Para já, são visíveis traços de alguma inconsistência relativamente às proclamadas intenções de uma efectiva promoção da paz com os Estados vizinhos. Entre estes, há a considerar o caso particular de Israel. Curiosamente, a Turquia foi, em 1949, o primeiro país de maioria muçulmana a reconhecer o Estado de Israel. Todavia, acabaria por se revelar como um dos seus mais contundentes críticos, logo após os violentos incidentes, em Gaza. Estes momentos dramáticos levariam o presidente Erdogan a classificar Israel como um verdadeiro “Estado terrorista”. Este cenário, contudo, parece ter sido alterado, na sequência do recente acordo para a formação de um governo de emergência nacional, assinado por Netanyahu e Gantz. Num dos seus habituais artigos de opinião, Seth Frantzman, analista político do Middle East Forum, as relações entre Israel e a Turquia parecem estar numa promissora fase de mudança, após uma década de claras dificuldades de entendimento. A sua opinião baseia-se na análise que faz à escolha de um novo governo, que conta, a partir de agora, com um novo ministro das Relações Exteriores, Gabi Ashkenazi, com as acções turcas visando o regime sírio, e, finalmente, a convergência na necessidade de diálogo, tanto na Síria como no Mediterrâneo. De resto, são já vários os analistas que consideram como certa a existência de interesses comuns entre os dois países, sublinhando o facto de que a presença do Irão, na Síria, joga contra os interesses turcos, onde a acção do Hezbollah libanês desempenhou um papel dominante na batalha, em Idlib, que registou a morte de meia centena de soldados turcos. Também a pandemia [COVID-19], a par de outros desafios, entre os quais o comércio, o turismo e a energia, parece estar a criar condições favoráveis à normalização das relações. É, entretanto, de relevar o facto de a Rússia manter relações amigáveis ​​com Israel e a Turquia.

Ainda no contexto regional, um dos mais sérios concorrentes da Turquia – o Irão -, tem beneficiado de um crescente protagonismo, em particular no Iraque, onde ganhou uma significativa vantagem relativamente à Turquia, em termos de influência política. Na prática, esta realidade acaba por ser a responsável por um delicado equilíbrio de forças na cena regional, onde ambos os países se empenham num jogo de poder.                                     

Entretanto, e apesar da continuidade das relações entre a Turquia e a União Europeia, em diferentes domínios, o actual clima de confrontação na região tem dado lugar a fundadas preocupações e a um sentimento crescente de desconfiança. Este cenário assumiu contornos mais graves, sobretudo com o recente agudizar das tensões entre a Turquia e a Grécia, no caso da passagem dos fluxos migratórios com destino à Europa, e as sucessivas intervenções militares turcas no norte da Síria.

Finalmente, no âmbito das suas relações com a OTAN, os recorrentes sinais da hostilidade turca face aos seus parceiros ocidentais têm vindo a provocar um sentimento crescente de desconfiança, potenciado pela recente aliança com a Rússia, no domínio do armamento. Embora por vezes marcada por crises de âmbito político, devidas a conflitos relacionados com os separatismos curdo e checheno, e com o ambiente de disputa na região balcânica, a década de 1990 assinalaria um período de grande desenvolvimento nas relações económicas entre os dois países, que viria a ter a construção de um importante gasoduto – Blue Stream – que assegura o transporte do gás natural da Rússia para a Turquia, como um dos seus pontos mais altos. Desde então, e a despeito da manutenção de divergências de diversa ordem, as relações entre os dois países, nos mais variados domínios, incluindo o militar, têm-se intensificado.

Na verdade, o relacionamento entre a Turquia e a OTAN nem sempre foi fácil. Ainda no contexto da Guerra Fria, há registo de algumas tensões, parte das quais motivada pelos sucessivos golpes militares ocorridos na Turquia, ao mesmo tempo que outras derivaram do conflito com Chipre, tendo à mistura a reacção norte-americana a estes conflitos regionais. Apesar deste facto, a Aliança Atlântica mantém laços solidários com Ancara, reafirmados, agora, no âmbito da questão síria. Todos estes factos históricos, associados, à recente aquisição de material bélico [sistema antimíssil] à Rússia, e agravado. agora, pelo conflito sírio, têm suscitado um crescendo de dúvidas acerca do futuro das relações entre a Turquia e a Aliança Atlântica. Todavia, e apesar do alinhamento turco-russo, nem sempre entendido como profundo, uma grande parte dos analistas considera, ainda assim, a interdependência [Turquia-OTAN] de relevante importância nos domínios da segurança. No plano regional [Médio Oriente], o retraimento norte-americano, a par da ausência europeia, forçou a Turquia, de modo natural, a procurar parcerias alternativas. É neste contexto, que a Rússia surge como um assumido protagonista.

CONCLUSÕES

Nos alvores deste novo milénio, e em resultado das suas necessidades económicas, foi manifesta a profunda reformulação sofrida pelo Estado turco no domínio da sua política externa, e que resultaria no firme propósito de se afirmar como um protagonista a ter em conta, tanto no plano regional, como no contexto internacional, em domínios tão diversos como a economia e a segurança.

Com a vitória do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, na sigla em turco), no início deste novo milénio, a política turca conheceu uma profunda viragem. Também no domínio das suas relações externas houve mudanças assinaláveis, com os novos dirigentes apostados numa economia de livre mercado, num momento de profundas e globais transformações, e empenhados em mostrar ao mundo uma nova imagem de moderação, sob o ponto de vista religioso. Com o claro propósito de afirmar a sua crescente autonomia política face ao exterior, e de retirar dividendos com esta sua nova estratégia, a Turquia apresenta como uma das suas prioridades a gradual aproximação a outros actores da cena internacional, abandonando, assim, a postura assumida ao longo da Guerra Fria, e orientando a sua política externa, sob o ponto de vista geoestratégico, para uma realidade assente em novos equilíbrios de poder, e com base numa abordagem de problemas zero com os Estados vizinhos, enquanto solução para a paz, tanto no plano regional, como mundial, num sistema internacional de carácter cada vez mais multipolar.

Lisboa, 14 de Junho de 2020

João Henriques é
Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico
Investigador Integrado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa