Os desacreditados do Myanmar

É no Myanmar, a antiga Birmânia, que habita uma das maiores etnias minoritárias do mundo: os Rohingyas.

Esta minoria tem vindo a ser vítimas de sucessivas perseguições e violência na sua própria “casa”, o que os obrigou a um avultado êxodo para os países vizinhos, nomeadamente Bangladesh. Contudo, os desafios que enfrentam não param quando atravessam a fronteira. Dentro ou fora do país, o seu futuro mantém-se incerto e desanimador.

Mas quais as razões para a perseguição e violação incessante aos Rohingyas?

Os Rohingyas são desacreditados no seu próprio país por razões históricas pouco evidentes. Segundo Ana Bulhosa, antiga estagiária da Organização das Nações Unidas – ONU, cuja dissertação abordou a ação das Nações Unidas na questão Rohingya, “são reconhecidas 135 etnias e os Rohingyas não são considerados dentro das mesmas. O governo militar de Myanmar rejeita completamente o nome “Rohingya” e de que existem Rohingyas em Burma (Myanmar)”.

Segundo a ONU, este grupo tem sido alvo de uma profunda limpeza étnica – através do massacre, violência e perseguição. A justificação surge com fundamento da era colonial: “A rejeição violenta que os Rohingyas sofrem dos budistas nacionais e do governo de Myanmar deve-se ao facto de eles sentirem que estes foram impostos pelo colonialismo britânico, de que invadiram a sua cultura e a sua terra”, afirma Ana Bulhosa.

A origem das divergências e tensões surge nomeadamente após a independência face aos colonialistas britânicos, sendo-lhes negada a concessão e acesso a necessidades primárias de um indivíduo: desde a saúde à educação; possuírem propriedade, a viajar entre Estados ou vilas e, até mesmo, o direito à cidadania e nacionalidade. Os budistas étnicos de Arracão, segundo Ana Bulhosa, são treinados pelos militares com o intuito de criar conflitos: “Quando tinham os supostos direitos de cidadania, impediam-nos de se movimentarem entre vilas para estudar, trabalhar ou ir a uma consulta médica, por exemplo.”

As mulheres Rohingya já sofrem nas mãos dos próprios Rohingya

A repressão atinge o seu expoente máximo em 2017

Em agosto de 2017, sucedeu-se uma violenta repressão contra esta minoria como reação a ataques feitos a cerca de 30 postos policiais pela Arakan Rohingya Salvation Army.

O Crackdown em 2017, chamado de Clearance Operation, tinha como objetivo, oficialmente, apanhar os culpados e membros dessa organização. Contudo, foi utilizado como um pretexto para os acontecimentos que se seguiram. “

“Só no Crackdown, em 25 agosto de 2017, mataram por volta de 20 mil homens. Foram destruídas e incendiadas vilas, torturadas e mortas pessoas (inclusive crianças), violadas mulheres. Houve violência sexual, separavam os homens e as mulheres, faziam-lhes coisas horríveis, trancavam-nos dentro de uma casa e incendiavam-na. Fizeram isso por toda a zona onde os Rohingyas estavam estabelecidos”, afirma Ana Bulhosa.

Estes acontecimentos obrigaram ao êxodo forçado de cerca de 480 000 indivíduos, que temiam pela sua vida e almejavam segurança em direção aos países vizinhos, canalizando-se maioritariamente para o Bangladesh dado às facilidades de acesso por terra e proximidade geográfica.

A fuga para Cox’s Bazar não parece solução

A maioria acabou por se refugiar no Cox’s Bazar, um distrito de Chittagong, situado no Sul do Bangladesh fazendo fronteira com o Myanmar. Atualmente, contém 34 campos de refugiados, abrigando cerca de um milhão de Rohingya.

São diversos os desafios enfrentados nos campos de refugiados no Cox’s Bazar. “As condições de vida nestes campos são precárias. As crianças não vão à escola e provavelmente vão passar mais alguns anos sem ir à escola. Está-se a criar uma geração que não tem qualquer tipo de escolaridade nem educação”, justifica Ana Bulhosa.

O crime organizado também se conseguiu infiltrar nestes campos, condicionando fortemente a vida dos apátridas. Alguns dos principais problemas dão-se devido à falta de segurança e controlo, propiciando a utilização destes campos para o tráfico de armas e drogas, contribuindo igualmente para o estabelecimento uma economia informal.

A violência nos campos de refugiados já se reflete entre o próprio povo: “As mulheres rohingyas já sofrem nas mãos dos próprios rohingya”, afirma a antiga estagiária da ONU. “O próprio Bangladesh não sabe até que ponto quer entrar nos campos de refugiados ou integrar os Rohingya na sociedade. Não sabe se quer gastar recursos ou acha que já gastou recursos a mais com esta questão. Para o Bangladesh, esta situação sempre foi temporária, não tendo qualquer interesse em acomodar, nem gastar os seus recursos com estes indivíduos, nomeadamente, em termos de policiamento, forças de segurança, cuidados de saúde e educação. Perante este contexto, as organizações internacionais e os voluntários têm desenvolvido um trabalho extraordinário no fornecimento destes bens públicos nos campos de refugiados”.

A discriminação do povo Rohingya já está tão entranhada na sua cultura que a sua rejeição não é incutida, surge de forma natural. Só pode ser combatida através da educação”

A posição de Aung San Suu Kyi

Aung San Suu Kyi, antiga presa política, assumiu o cargo de Conselheira de Estado em 2016. Conhecida pelos seus ideais democráticos e adepta da não-violência, fez um discurso em Naipidau (capital do Myanmar), em 2019, antes das eleições, onde não proferiu a palavra “Rohingya” e afirmou que a acusação de genocídio era muito grave, forte errónea. Este discurso deu força aos militares e nacionais, que se recusam a reconhecer e a legitimar a identidade desta minoria, fortificando o ataque.

A rejeição das alegações levou a que os teóricos e a própria comunidade internacional questionassem os valores defendidos pela líder, relembrando que ganhou o Prémio Nobel da Paz, em 1991.

Torna-se importante ressalvar que a falta de posição do governo propicia o ambiente xenófobo presenciado no país. “A discriminação do povo Rohingya já está tão entranhada na sua cultura que a sua rejeição não é incutida, surge de forma natural. Só pode ser combatida através da educação”, afirma Ana Bulhosa. “Apesar de não sabermos a real opinião de Aung San Suu Kyi em relação aos acontecimentos de 2017, se ela admitisse que de facto houve genocídio e culpasse os militares, iria sofrer consequências em casa, tendo em conta que os militares nunca deixaram de ter poder, mesmo na fase mais democrática do país”.

Comunidade Internacional: as possíveis soluções

É muito complicado acusar Myanmar em relação aos crimes cometidos no seu território aos rohingyas. Se por um lado existem elementos que nos remetem para o crime de limpeza étnica, segundo o Estatuto de Roma, ou para o crime de genocídio, a indefinição do crime limita a ação da ONU, pois tratam-se de acusações muito graves e sérias, que requerem provas concretas, levando a um processo de investigação interminável.

Segundo Ana Bulhosa, “enquanto a China continuar no Conselho de Segurança e vetar todas as tentativas de sancionar Myanmar, dificilmente se conseguirá que este sofra consequências mais severas. A China não tem interesse que o Myanmar seja responsabilizado pelas suas atrocidades já que tem o seu próprio problema com os Uigures”.

Relembrando que o artigo 2º, nº 7, da Carta das Nações Unidas afirma que não é permitida a ingerência nos assuntos internos dos Estados, dificilmente a ONU poderá fazer mais do que faz agora – reuniões, informar as pessoas, relatórios, recolher testemunhos.

Para Ana Bulhosa há duas soluções: 1) fazer pressão sobre Myanmar, para que ceda e proporcione nacionalidade aos Rohingya e consequentemente a documentação necessária para viajar e trabalhar noutros países; 2) continuar a informar e disseminar o máximo de informação possível para que a sociedade civil se mova em torno do apoio a esta minoria.

Atualmente, com o golpe de Estado a 1 de fevereiro de 2021, tornou-se complicado acompanhar a situação dos Rohingya que ainda residem no Myanmar, dada à censura dos meios de comunicação e ao controlo da informação.

“A todos nós cabe-nos manter a identidade dos Rohingya. O facto de o governo de Myanmar tentar tirar legitimidade ao nome e não deixar que este grupo se identifique como rohingya, com a finalidade de lhes tirar a identidade e desprover a sua existência de significado pode ser contornado, nomeadamente através da produção de artigos, trabalhos, relatórios, disseminando informação sobre a sua causa ou através de gestos simples como escrever e dizer “Rohingya”, para que a sua luta na caia no esquecimento”, termina.

Artigo de Tânia Ribeiro e Elena Prosunin. Análise de Ana Bulhosa.
Fotografia | Reuters