As mais subtis e penetrantes de todas as influências são aquelas que criam e mantêm o repertório de estereótipos – Walter Lippmann, jornalista, escritor e comentarista político americano. Este é o ponto de partida desta crónica que tenta enfatizar o papel vital dos meios de comunicação, de massa e não só, na criação e reprodução de um tipo de racismo que é a islamofobia.
Os meios de comunicação desempenham um papel importante na criação e na distribuição de ideologias, contribuindo para a produção de conhecimento geral. As estórias e as imagens difundidas pelos media fornecem recursos simbólicos, através dos quais organizamos uma cultura comum que nos oferece uma percepção de pertença a um grupo. Ou seja, os media, seja por via do género informativo ou do entretenimento, tem o papel de representar uma determinada versão como “realidade”. E, subsequentemente, desempenham também um papel importante na formação de opiniões e na estruturação das perspectivas públicas do “nós” e do “outro”; do “grupo” e do “outsider”. Isto faz com que a representação de minorias nos media seja um tópico muito investigado na comunidade académica, sobretudo nas últimas décadas, em que se analisam as relações entre as representação mediática de minorias com questões relativas à etnia, raça, multiculturalismo, religião, identidade, etc.
De todas as minorias, e se nos centrarmos nos assuntos mundiais contemporâneos, os muçulmanos e islâmicos estão no cerne de muita censura e debate. Desde o fatídico 11 de Setembro, os media noticiosos, reforçados pelos debates políticos em torno de questões relativas aos muçulmanos e ao islamismo, elaboraram um discurso orientalista que gerou uma divisão relacional entre o Ocidente e o mundo tradicional Islâmico. É perceptível uma visão dominante antagónica contra os muçulmanos e o Islão em muitas sociedades, gerada pela pulverização mediática das relações sociopolíticas mais tensas por parte das grandes potências mundiais, começando pelos EUA, que trouxe a proposição de “choque de civilizações”, aquando da administração Bush.
Essa ideia foi alimentada até à actualidade pelo surgimento de vários grupos terroristas que se autodenominam de islâmicos e que levam os media a produzir uma cobertura que constrói a ideia de Islão que interessa a esses fundamentalistas com pretensões de se imporem pelo medo, pela imprevisibilidade, minando dessa forma o sentimento de segurança instaurado pelo poderoso Ocidente. Se antes a representação mediática do povo muçulmano era baseada em estereótipos construídos sobretudo pelas obras cinematográficas, com tipificações de “traficantes de escravos”, “primitivos” e “ignorantes”, hoje legitima-se uma identidade islâmica “extremista”, “terrorista” e “violenta”. E não obstante muitos muçulmanos, residentes dentro e fora dos países ocidentais, tentarem esclarecer a sua prática diária do Islão como religião de Paz, distinguindo-se dos grupos extremistas que são uma minoria entre os cerca de 1,4 bilhões de muçulmanos em todo o mundo, o certo é que a maioria desta comunidade sofre as consequências ameaçadoras da discriminação, resultantes dos actos terroristas isolados.
As Indústrias culturais dos EUA e da Grã-Bretanha, com um poder hegemónico de produção, são responsáveis por potenciar essa discriminação nas percepções públicas das populações ocidentais, seja por via das notícias como dos retratos de árabes e muçulmanos na cultura popular. Crenças religiosas mal interpretadas e distorcidas, a hostilidade, o ódio e a repugnância em relação aos árabes e muçulmanos passaram a estar firmemente enraizados na psique e na ideologia americana e anglo-saxónica, sobretudo a partir dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, nos EUA, e de 7 de Julho de 2006, em Londres.
Desde então são representados colectivamente e identificados por certas características estereotipadas, sejam na banda desenhada, na televisão, no cinema ou na imprensa. Estudos que procuraram conhecer a percepção dos jornalistas americanos sobre os islâmicos, mostraram que estes profissionais, que até advogam princípios de imparcialidade, tendem a pensar e falar deles como um todo, julgando-os pelos excessos flagrantes de alguns, considerando-os pessoas perigosas que andam armadas e com uma indumentária bizarra. Também análises a séries americanas mostraram que as personagens islâmicas são consistentemente descritas como o “outro” e construídas de acordo com os juízos de valor fixados pela percepção ocidental. Nas suas tramas o Islão é percebido como a religião da violência, da guerra, do ódio e da opressão das mulheres.
Essas representações do “outro” têm que ser enquadradas no discurso ideológico mediático da islamofobia. O enquadramento do terrorismo por parte dos meios de comunicação de massa reforça os estereótipos prevalentes e o seu possível impacto na representação social de árabes e muçulmanos, centrada essencialmente numa identidade étnica e religiosa. Um exemplo concreto é a discussão gerada à volta da mini-série Sleeper Cell sobre um grupo terrorista jihadista, após o resultado de um estudo que evidenciou como esta produção retrata árabes e não árabes muçulmanos na série. Por um lado, alguns dos personagens são apresentados como muçulmanos devotos, por oposição aos não crentes, e que têm o propósito de transformar os Estados Unidos num Estado muçulmano. Por outro lado, o islamismo é retratado negativamente, como uma religião hipócrita, manipuladora e invasora. Outro ponto enfatizado foi que quase todos os terroristas da série são muçulmanos, ainda que a realidade mostre que o terrorismo não é uma atividade exclusivamente islâmica ou de natureza muçulmana. E o pior é quando esta representação perpassa da ficção para as notícias, com repórteres de imagens e jornalistas das grandes agências de informação americanas a atribuir – acredito que subconscientemente – a ideia de vilão aos muçulmanos e árabes de uma forma geral. E esta imagem é difundida repetidamente para as redacções dos meios de informação espalhados por todo o mundo que, por questões económicas e logísticas, limitam a sua cobertura local e autónoma com recolha de factos em primeira mão. E, mesmo quando o fazem, levam como primeiro definidor o enquadramento entretanto já padronizado pelas grandes oligarquias de comunicação mundiais, acabando por reproduzir a conceitualização do Islâmico radical, reduzindo a sua verdadeira identidade a terroristas selvagens e apoiadores da violência.
Um dos provérbios árabes mais famosos diz ‘por repetição, até o burro aprende’ (al tikrar biallem il hmar). E pode dizer-se que os media ocidentais têm usado a repetição como ferramenta de ensino, inculcando no público percepções insidiosas do Islão e do povo muçulmano, passíveis de degenerarem em sentimentos de islamofobia, conforme a definição do relatório Runnymede Trust (1991, p. 5): “hostilidade infundada para com os muçulmanos e medo ou aversão por todos ou pela maioria dos muçulmanos”.
Carla Cruz,