Primavera Árabe: uma década depois

Dez são os anos que nos separam do início da Primavera Árabe. Apesar de existirem algumas teorias contrárias, crê-se que este fenómeno se tenha iniciado na Tunísia, após um jovem vendedor ambulante, de 26 anos, ter ateado fogo ao próprio corpo, de forma a chamar a atenção do tratamento repressivo das autoridades policiais tunisinas e das dificuldades de vida no país em concreto. Com um propósito mais ou menos revolucionário, este acontecimento marcou as sociedades árabes. Assim, a partir de 2011, o mundo árabe sofreu um conjunto de revoltas e, em alguns casos, revoluções, com prisma e argumentação em aspetos políticos, sociais e económicos. Uma década depois, tentaremos decifrar o real impacto da Primavera Árabe nas condições de vida atuais destes povos e nos seus regimes políticos.

Teresa Almeida e Silva, professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), não tem dúvidas que a Primavera Árabe foi motivada pelo descontentamento social em relação aos regimes instalados: “Desemprego elevado, pobreza (em alguns casos, pobreza extrema), injustiças sociais e políticas, falta de liberdade de expressão e regimes ditatoriais, são os principais motivos que se podem apontar para este processo”.

Sheikh Zabir Edriss, complementando a análise da docente do ISCSP, refere que, mesmo antes da Primavera Árabe, já existia um sentimento de revolta para com os monarcas e governantes dos países: “As elites eram muito estanques e não existia qualquer crescimento nem mobilidade social. O salário mínimo de alguns países andava à volta dos 70 euros. O povo queria algo para melhorar a sua vida, economicamente falando”.

“As consequências que ficaram em alguns países vêm demonstrar que a “Primavera” fracassou”

Diferente de outras manifestações, este fenómeno (Primavera Árabe) possuiu caraterísticas também elas distintas que ajudaram à sua mediatização internacional. Primeiramente, os seus principais agentes foram jovens que não encontravam, no então contexto, rumo para a sua vida – muitos deles com estudos superiores. Associado a este fator, beneficiaram do boom das redes sociais para espalharem a sua mensagem e reivindicarem os seus direitos, alcançando um número de visualizações e apoiantes que seria impossível sem estes veículos digitais.

Contudo, segundo Teresa Almeida e Silva, “a forma como os regimes reagiram contra os manifestantes, veio demonstrar que é quase impossível enfrentar esses mesmos regimes. Cada país tem as suas próprias idiossincrasias. Em cada caso concreto, os contextos internos e a natureza dos regimes é que determinaram os diferentes processos de revolução e a forma como cada Estado reagiu a esta Primavera. As consequências que ficaram em alguns países vêm demonstrar que a “Primavera” fracassou; o que pode levar as sociedades árabes a perder a fé nos processos de mudança política.”

Já Sheikh Zabir Edriss sublinha que “a nível financeiro está tudo na mesma, mas o medo que havia da ditadura acabou – uma das coisas que mais realço, enquanto conquista, é a liberdade de expressão. Com isto, vários grupos mais radicais também surgiram – sobretudo, a nível religioso e espiritual, com interpretações do Corão diferentes”. Todavia, o líder religioso questiona-se se houve, apesar da queda de algumas lideranças, uma melhoria significativa na governança dos países.

“O Islão não é a favor da monarquia, nem é a favor dos golpes de Estado e ditaduras”

Desde 2011, é possível afirmarmos que este processo revolucionário derrubou os regimes de quatro países (Tunísia, Egipto, Líbia e Yémen), aumentou a tensão entre sunitas e shiitas, que disputam o espaço político nestes territórios, e, direta ou indiretamente, provocou conflitos locais com uma grande magnitude e projeção internacional – principalmente, as guerras civis da Síria e Yémen.

Teresa Almeida e Silva enumera efeitos políticos e sociais, nos países abrangidos pela Primavera Árabe, começando pelo destaque na Tunísia e Egipto como os que, aparentemente, estão mais estáveis: “No Yémen, depois de várias semanas debaixo de fogo dos protestos populares, o Presidente Ali Abdullah Saleh conseguiu sair do país incólume. O Presidente que lhe sucedeu manifestou, na altura, interesse em dar um novo rumo à política yemenita, procurando distanciar-se do passado ditatorial do seu antecessor. Todavia, um golpe de Estado, em março de 2015, conduziu a uma intervenção externa liderada pela Arábia Saudita, que mergulhou o país numa guerra civil”.

A docente e investigadora do ISCSP prossegue, realçando os casos paradigmáticos da Síria e da Líbia: “A Síria, dada a sua inserção regional e características geopolíticas únicas, está há muito em conflito. No caso da chegada da Primavera Árabe à Síria, esta tem que ser entendida à luz da política de equilíbrio de poderes regional: a luta entre a Arábia Saudita e o Irão pelo domínio do mundo muçulmano. A continuação (e exacerbação) do conflito, e guerra civil em si, deve-se, fundamentalmente, ao regime sírio, ao qual importa a manutenção do status quo. A Síria é, hoje, palco de um a guerra civil que coloca em confronto várias frentes. De um lado, o regime de Bashar al-Assad, apoiado pela Rússia e o Irão (e Hezbollah) e, por outro, os movimentos contra o regime, apoiados pelos EUA, Arábia Saudita e EAU, e os movimentos contra o regime caracterizados pelo terrorismo de matriz islâmica, como a Al-Qaeda ou o Daesh. Já a Líbia está, neste momento, dividida em dois grandes blocos que se opõem entre si: um em Benghazi e outro em Tripoli. Esta rivalidade que, para além da questão política, tem implícita uma luta pelos recursos do país, pode conduzir a Líbia a uma longa guerra civil”.

“O Ocidente não pode impor a sua democracia a estes países; pode, antes, convencê-los a usá-la”

Após todo este processo revolucionário, que, segundo alguns teóricos, ainda se encontra em curso, os nossos dois convidados partilham a mesma opinião: não existem grandes mudanças, uma década depois. Muitos acreditavam que pudessem ser incutidos valores ocidentais, de forma indireta, nos países árabes, mas, concluindo até à data, isso não é exequível, atendendo a diversas especificidades políticas e, principalmente, sociais.

De acordo com o Sheikh, “o Islão ensinou a sua democracia – um misto de haver colégios tribais, com um represente de cada bairro, que, juntando diversos votos, escolhe o seu líder. O Islão não é a favor da monarquia, nem é a favor dos golpes de Estado e ditaduras. A Primavera Árabe não veio, ainda, ajudar a esse processo de transição democrática. Quem protagonizou a Primavera Árabe fê-lo com um objetivo de implantar um califado islâmico – o que é certo é que não se consegue fazer isso. Todos aqueles que defendiam países árabes “mais ocidentais”, também, por enquanto, não obtiveram aquilo que pretendiam. Aliado a isso, o petróleo tem perdido valor, prejudicando a economia de alguns destes países”.

A professora do ISCSP corrobora com esta opinião e termina referindo que “o Ocidente não pode impor a “sua democracia” a estes países; pode, antes, convencê-los a “usá-la”, cada um à sua maneira, adaptando essa democracia às suas próprias idiossincrasias”.

Artigo de Diogo Alexandre Carapinha. Análise de Teresa Almeida e Silva e Zabir Edriss.