O Dilema Bósnio

Desde o desmembramento da Jugoslávia, a região dos Balcãs tem constituído um verdadeiro barril de pólvora. Nos últimos meses, o risco de escalada de tensões tem aumentado vertiginosamente, inflamando velhas feridas étnico-religiosas que tiveram pouco tempo para sarar desde as guerras da década de 1990.

A Bósnia e Herzegovina (de ora em diante designada por Bósnia), continua a ser o principal nó górdio dos Balcãs. Foi em Sarajevo, capital da Bósnia, que no ano de 1914 um estudante sérvio desencadeou a Primeira Guerra Mundial ao assassinar o herdeiro ao trono do Império Austro-Húngaro. Foi, também neste território, que em 1992, se repetiu uma das grandes hamartias da humanidade: um novo genocídio na Europa.

Em novembro de 2021, o recém eleito alto-representante para a Bósnia e Herzegovina, Christian Schmidt, num relatório dirigido às Nações Unidas, chegou mesmo a alertar para o perigo iminente de ruptura e regresso ao conflito, sublinhando que a Bósnia atravessa “a maior crise existencial do período pós-guerra”.

A Bósnia Herzegovina é muitas vezes equiparada a uma mini Jugoslávia, um subproduto da fracassada ideia de federalização de uma constelação de etnias. Em vez de seis repúblicas federais descentralizadas e duas províncias autónomas, a Bósnia é composta por duas entidades administrativas com parlamento e instituições próprias: a Federação croato-bósnia, que alberga a maioria croata e bosníaca (i.e., bósnios muçulmanos, que representam cerca de 50% da população da Bósnia), e a República Srpska (República Sérvia), constituída maioritariamente por sérvios. A República Srpska encontra-se, ainda, dividida em duas regiões – as metades leste e oeste – que se encontram no distrito de Brčko. Este enclave, segundo os Acordos de Paz de Dayton, seria co-administrado por ambas as entidades, mas na realidade, acaba por ser uma cidade autónoma e autogovernada.

Toda esta complexa arquitetura administrativa espelha o imbróglio que caracteriza as dinâmicas sociopolíticas, culturais e religiosas da região.

Os Acordos Dayton de 1995, conseguiram alcançar um cessar-fogo, pondo fim a quatro anos de conflito, e instituíram estas novas divisões administrativas que relembram a repartição indiana em dois domínios políticos autónomos, também eles, baseados em pressupostos étnico-religiosos. Os dois primeiros anos depois dos Acordos de Dayton, foram caracterizados por uma vaga de migrantes que se realojavam no lado certo das fronteiras.

A constituição forjada em Dayton tinha como base um princípio falacioso: pressupunha que existiria uma vontade de convivência e cooperação por parte das elites étnicas; que nunca existiu. Não é de estranhar que com o passar dos anos – 26 anos passados desde a Guerra da Bósnia – os remendos aplicados pelos Acordos Dayton começam a cair. Poucos ou até nenhum dos problemas que motivaram a guerra foram resolvidos: os desentendimentos étnico-religiosos são frequentemente projetados no plano político, traduzindo-se no extremar de posições que, por sua vez, reforçam a crónica questão secessionista, bloqueiam progressos políticos e amputam reformas nos diversos setores da sociedade Bósnia.

A recente eleição de um novo alto-representante da comunidade internacional na Bósnia e Herzegovina, voltou a inflamar os ânimos. O cargo deveria ter sido extinto em 2008, contudo, o OHR (Office of the High Representative) e o alto-representante continuam na engrenagem administrativa bósnia, gerando mais discórdia do que consenso e exacerbando as disfunções do sistema político do país. A nível internacional, a eleição de Christian Schmidt foi também bastante controversa. Ainda assim, mesmo com a oposição russa e chinesa, o candidato alemão ganhou.

Como se estes desenvolvimentos não fossem já extremamente sensíveis, na véspera da sua saída, Valentin Inzko (que assumiu o cargo durante 12 anos), anunciou, em conformidade com o seu mandato, modificações ao Código Penal, instituindo a chamada “lei de Inzko” que passava a permitir sancionar os negacionistas dos crimes de guerra – algo que os bosníacos esperavam há muito tempo, mas que não foi bem recebido pelos sérvios.

Munido da nova “lei de Inzko”, o líder da República Srpska, Milorad Dodik, prossegue a luta nacionalista, retaliando com ameaças de retirada da República Srpska das instituições federais – o sistema judiciário, financeiro, fiscal e o exército – implementando sistemas independentes na República Srpska. Se a materialização destas promessas constitui uma “linha amarela”, numa clara deriva secessionista, a criação de um exército próprio é uma clara “linha vermelha” para toda a comunidade internacional.

Ao mesmo tempo que Dodik leva a cabo a luta pela independência da República Srpska, rejeitando qualquer união intercultural e qualquer administração externa, que aos seus olhos procuram criar um “estado muçulmano da Bósnia e Herzegovina”, na Federação croato-bósnia, nasce uma acesa disputa eleitoral entre croatas e bosníacos. Os croatas bósnios exigem a modificação da lei eleitoral e da constituição, com vista à criação de duas circunscrições eleitorais – uma maioritariamente croata e outra bosníaca – no seio da Federação croato-bósnia, para evitar que a maioria bosníaca eleja um candidato croata para a presidência. Para os bosníacos isto soa a separatismo.

Perante o impasse e a falta de reformas eleitorais, o principal partido croata aliou-se taticamente com Dodik, ameaçando boicotar as eleições presidenciais de outubro.

A Guerra na Ucrânia vem reacender os ânimos políticos nos Balcãs, especialmente na Bósnia e Herzegovina. Há quem veja um novo horizonte de oportunidades para levar a cabo uma jogada secessionista na região, com apoio quer da Rússia, quer da Sérvia. Há também quem ache que o esforço coordenado do ocidente em condenar a invasão russa e em implementar sanções à Rússia veio mudar o paradigma político nos Balcãs, afastando Rússia do xadrez geopolítico da região.

A internacionalização da questão ucraniana tem gerado acesos debates políticos na Bósnia, opondo os principais líderes políticos e resultando num impasse técnico, que deixa a Bósnia de fora do conjunto alargado de países europeus que condenou a invasão russa e aplicou sanções à Rússia.

No horizonte, antecipam-se, com um misto de ansiedade e esperança, as eleições de Outubro, que irão ditar o destino deste mosaico étnico, religioso e político a que chamamos Bósnia e Herzegovina.

João Maria Lourenço Vieira

*Estagiário do Observatório do Mundo Islâmico e mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais na FCSH, da Universidade NOVA de Lisboa

Fotografia | NATO