Embaixador Sérgio Duarte: “Uma nova grande guerra significará o fim da civilização como nós a conhecemos”

Durante as últimas semanas, Viena tem sido o palco de grandes atenções internacionais. À mesa, na capital austríaca, têm sido discutidas as principais tensões do mundo, com especial destaque para o conflito Rússia-Ucrânia-NATO, mas também para a questão do desarmamento nuclear.

Apesar da inquietação ocidental em relação à situação na Ucrânia – que não tem abrandado, apesar do diálogo -, Estados Unidos da América, China e Rússia chegaram ao consenso de que é preciso travar a proliferação de armamento de destruição maciça. Mesmo considerando esta declaração conjunta, é pouco provável que as principais potências internacionais se esqueçam do seu poderio nuclear.

Esta é uma das conclusões de Sérgio de Queiroz Duarte, ex-Alto Representante da Organização das Nações Unidas (ONU) para Assuntos de Desarmamento.

Numa entrevista exclusiva ao Observatório do Mundo Islâmico, o embaixador brasileiro, que foi também presidente da Conferência de Exame do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), sublinha a importância do diálogo num mundo cada vez mais “em perigo”.

Entrevista de Diogo Alexandre Carapinha

Recentemente, em Viena, Estados Unidos da América, China e Rússia manifestaram uma opinião semelhante quanto à proliferação de armas nucleares: condenam veemente. Também nesta reunião estiveram Irão e outras potências. Curiosamente, há dias, os iranianos lançaram um foguetão, que foi criticado pelos ocidentais. Esta visão comum terá alguma credibilidade ou será mais um episódio de uma história interminável?

Sinceramente, acho muito difícil que os países que possuam armas nucleares venham a desfazer-se delas. Em grande parte da minha vida, tenho trabalhado para incutir a ideia de que as armas nucleares são inaceitáveis em qualquer tipo de civilização e devem ser eliminadas. No entanto, também sei que esse não é o pensamento dos que têm esse poderio nuclear – estas armas são essenciais para a sua segurança, por muito que sejam perigosas para a segurança do mundo.

Ou seja, o perigo não é só a proliferação.

Não, o perigo é principalmente a existência deste tipo de armas – que se resume a nove países. Nós, não possuidores de armamento nuclear, precisamos de continuar a campanha contra a existência deste equipamento, altamente danoso para todos.

E onde entra nesta equação o TNP?

Como referi, a não proliferação de armamento nuclear é do interesse de todos. E é aqui que entra o TNP. Os países concordaram em não obter este tipo de armas. E até podemos dizer que o TNP tem sido muito bem-sucedido, visto que só quatro países é que obtiveram armas nucleares fora do TNP, e é muito difícil que mais algum possa vir obtê-las, porque apesar de tentativas de alguns países – como a Líbia ou o Iraque, na altura de Saddam Hussein –, essas tentativas foram um fracasso e, possivelmente, no futuro, continuarão a sê-lo.

Como analisa a evolução da conflitualidade ao longo desta década?

A última década foi mais complicada, perigosa e difícil de ser gerida. A China aumentou a sua capacidade bélica, os Estados Unidos e a Rússia não travam o seu ímpeto de produção de armas – aproveitando os avanços tecnológicos e sofisticando cada vez mais o seu material – e a Coreia do Norte continua a aumentar a sua capacidade. Ao mesmo tempo, a multilateralidade das Nações Unidas – a capacidade de mediar esta situação – tem vindo a diminuir substancialmente.

Temos falado muito de armas e o que é certo é que, ao longo da História, o conceito de “arma” foi-se modificando à medida que novas invenções bélicas surgiram. Antigamente, se é verdade que as armas existentes tinham efeitos de menor escala, é também factual que hoje lidamos com armas de destruição maciça. No meio das várias inovações, guerras ocorreram, com efeitos cada vez mais devastadores. Perante esta constatação, receia o futuro das sociedades?

Sim, bastante. Cada vez inventam-se armas mais destruidoras, mais eficazes, e não se vê tentativas pacificadoras por parte dos países com maior peso na comunidade internacional. O mundo está em perigo e as sociedades ainda não tomaram essa consciência.

Considera que as armas cibernéticas serão as guerras do amanhã?

Seguramente. Hoje já há grandes manobras cibernéticas que tornam obsoletos os sistemas bélicos tradicionais.

Para além dos sistemas bélicos, a vida quotidiana das sociedades está dependente dos meios eletrónicos.

Exatamente. Estas armas geram o caos: impedem o país atacado de utilizar os sistemas de saúde, administrativo, bancário, etc. Tudo isto é gerido por meios eletrónicos, como referiu. Um ataque cibernético anula completamente as defesas de qualquer Estado e produz anarquia e conflito interno.

Qual a real ameaça da Rússia para o Ocidente?

Sei que não está a defender nenhum lado nem eu estou a tomar posição de alguma parte, mas é preciso ver-se uma coisa: a Rússia também pode achar o Ocidente uma ameaça. A perspetiva de ameaça é sempre ambígua. Cada um acha o outro uma ameaça. Todos os nove países com armamento nuclear são ameaças – para o mundo.

Índia, Paquistão e Coreia do Norte. Israel não mente nem desmente. São estes os outros “players”, raramente mencionados, que por vezes são deixados de fora da equação dos grandes poderosos. Que reais poderes têm estas nações para influenciar a geopolítica do mundo?

Apesar de não serem atores tipicamente centrais na política internacional, um conflito entre eles podem iniciar uma guerra mundial. Objetivamente, são tão perigosos como os outros.

Considera que existirá a possibilidade de juntar à mesa de negociações um líder norte-coreano, em busca de objetivos comuns?

Será muito complicado. A verdade é que o líder norte-coreano já dialogou com os Estados Unidos, na era Trump, mas aparentemente, não houve resultados palpáveis. Como disse, é um assunto sempre complicado.

Ainda no Oriente, encontramos uma região que anda sempre na agenda pública, pelos piores motivos. O Médio Oriente é uma zona muito complexa e problemática neste enquadramento que temos falado.

O Médio Oriente é um caso paradigmático de como a diplomacia erra muito. Esta zona já devia ter tido uma forte intervenção multilateral por parte dos Estados com maior poder no panorama internacional. Isso ficou quase consubstanciado na Conferência de Exame e Avaliação do TNP, em 1995, que determinou a validade indefinida do tratado. Uma das condições aceites pelos membros do tratado foi a realização de uma conferência para acabar com as armas de destruição em massa no Médio Oriente – uma conferência de desarmamento.

Condição essa que ainda não foi cumprida…

Infelizmente, a caminho dos 30 anos da assinatura deste tratado, essa resolução ainda não foi cumprida. É preciso termos muita atenção ao Médio Oriente. É um lugar muito complexo, em que conflitos regionais podem vir a ganhar uma escala mundial.

Outra das preocupações da comunidade internacional é a rapidez com que o programa nuclear do Irão está a avançar.

Qualquer país, não necessariamente o Irão, que não seja membro do TNP e que tenha um programa nuclear que seja objeto de dúvidas é um problema grave.

De que forma é que as sanções económicas americanas são a melhor solução para evitar uma grave crise que, ao que parece, está iminente?

Aparentemente, as sanções económicas americanas não têm abrandado o ritmo do Irão neste aspeto. São as dificuldades americanas e europeias de negociar com o Irão que agravam esta preocupação e clima de incerteza e tensão.

A Casa Branca tem vindo a perder o interesse em desempenhar o papel de “polícia do mundo”?

Sim, acho que sim. Os Estados Unidos chegaram à conclusão de que perderam a capacidade e a vontade de continuarem a ser os “polícias do mundo”, como foram pouco depois da Segunda Guerra Mundial. Por isso, vão multiplicar-se os casos como o Afeganistão, Iémen, Sudão, Myanmar, Etiópia ou Venezuela.

Quem considera estar em condições de ocupar esse vácuo no poder?

Honestamente, não sei. Pelos menos do ponto de vista mundial, como os americanos já o fizeram. Não há nenhum ator que tenha propriamente a hegemonia mundial. Acho muito difícil que algum Estado ocupe esse espaço – e, naturalmente, incluo a China nesta afirmação.

Muitos analistas afirmam que estamos em plena “Guerra Fria 2.0” e que nunca houve tanta tensão, de vários lados, como agora. Acredita que caminhamos a passos largos para uma nova grande guerra?

Eu acredito que a Humanidade tenha aprendido com os erros passados. Se não aprendeu, será o nosso fim. Uma nova grande guerra, com armas de destruição em massa, significará o fim da civilização como nós a conhecemos.

Esse é o único fator que poderá levar à extinção da civilização?

Atualmente, o mundo tem duas grandes ameaças: a existência das armas nucleares e as alterações climáticas. Se nós não conseguirmos resolver, satisfatoriamente, a deterioração do meio ambiente, a nossa civilização termina dentro de uma, duas, três décadas. Se não resolvermos o problema das armas nucleares, a civilização acaba em segundos.
Na altura da Guerra Fria, falava-se na destruição mútua assegurada – em inglês, “mutual assured destruction” (MAD). Agora temos o SAD – “self-assured destruction” – ou seja, nós mesmos estamos a caminhar para destruir tudo o que construímos.

Por fim, o que pode a ONU fazer para apaziguar um mundo com cada vez mais tensões entre diversos atores e em vários pontos geográficos?

O secretário-geral do ONU tem feito os possíveis, mas as Nações Unidas têm tido cada vez menos poder de intervenção. Como sabe, trabalhei durante algum tempo nas Nações Unidas e posso afirmar na totalidade o seguinte: não é o que a ONU pode fazer, é o que os países-membros da ONU podem fazer. A organização não tem nenhum poder sobre os Estados – eles têm é que se aliar em objetivos comuns, de modo a que a ONU possa atuar nas suas múltiplas finalidades.

Fotografia | Organização das Nações Unidas