Catar no centro da geopolítica energética após a crise ucraniana

Potência Energética
O aumento de preços do petróleo e a iminência de ruptura do sistema de suprimento europeu de óleo e gás, efeito imediato após o início da guerra da Ucrânia, favorecem diretamente os países produtores do Oriente Médio.

Entretanto, em se tratando de gás natural um país deve se beneficiar diretamente num futuro próximo, o Catar. A importância do Catar na geopolítica energética foi construída a partir dos anos 1970, quando foram descobertas as primeiras reservas de gás natural. Desde então, o país não mediu esforços para ocupar uma posição de destaque no cenário energético mundial. Nem mesmo quando, na década de 1990, sua produção de petróleo e preços sofreram consideráveis quedas o país não se deixou abater. E, estrategicamente, aplicou fortes investimentos em produção de gás natural imaginando atingir naquela época o mercado europeu.

De fato, nos anos seguintes um crescente aumento de produção e de consumo impulsionaram o mercado de gás natural liquefeito (GNL) do Catar. E, em 2012, o mercado asiático, especialmente Japão e Taiwan, já era abastecido pelo gás catari, posicionando o país como o maior exportador mundial de gás natural. Durante este período, representantes da monarquia do Catar demonstraram inúmeras vezes o interesse em fornecer gás natural aos líderes europeus. Estes, no entanto, sempre argumentaram que naquele momento o gás russo atendia totalmente aos interesses comerciais do mercado europeu: gás natural canalizado com preços menores que o GNL enviado por navios, segurança no suprimento energético nas relações pragmáticas entre Rússia e Europa se contrapondo às possíveis instabilidades políticas do Oriente Médio e, claro, maior proximidade territorial. O tempo mostrou que as relações políticas e comerciais podem mudar ao longo dos anos e se utilizar de fontes energéticas como ferramenta no jogo geopolítico.

É bem verdade que o Catar, ao menos por enquanto, não tem capacidade de abastecimento externo além dos atuais compromissos contratuais. O pequeno país do Oriente Médio utiliza cerca de 80% de sua produção total no suprimento do mercado asiático e as vendas das futuras cargas da molécula já estão negociadas sob contratos de vários anos. Até o presente momento, qualquer ruptura de fornecimento energético para Europa não será contornada com o gás do Catar. Em 2020, pouco mais de 10% do GNL do Catar foram vendidos por contratos de curto prazo. Somente EUA e Austrália foram capazes de atender o mercado de curto prazo ou spot em situações emergenciais.

Em reuniões recentes, sendo uma delas entre representantes do Catar e dos EUA, se cogitou a possibilidade da transferência pelo mercado asiático, especialmente parte japonesa, de cargas oriundas do Catar para atender demandas emergências europeias. No entanto, nada ainda está oficialmente definido.

Nos últimos meses, as importações europeias de GNL atingiram números recordes e com pequena participação dos reservatórios do Catar. Segundo um alto funcionário de Washington, os EUA estão identificando mercados produtores do Norte da África e Oriente Médio que possam colaborar com suprimentos adicionais e, assim, garantir gás natural para a demanda energética do próximo inverno.

Todavia, dois importantes elementos favorecem os principais produtores de gás, e mais ainda o Catar. O primeiro ponto, diz respeito aos novos preços negociados no mercado de óleo e gás. Os preços do gás no mercado subiram muito além dos custos de produção do Catar. E o segundo ponto, são as previsões de algumas agências sobre uma expectativa de aumento de consumo global de GNL até 2030 acima dos números atuais. Este aumento
na demanda futura estaria muito atrelado com a lenta transição energética europeia, onde a imediata substituição de fontes fósseis por renováveis não ocorrerá tão cedo.

As produções de gás natural do Irã, atualmente, posicionam os iranianos como o principal país produtor do Oriente Médio, com 250 bmc em 2020 e expectativa de 481 bmc em 2050. Contudo, em termos de exportações de gás natural o Catar continua com a dianteira. Desta maneira, os volumes crescentes de produção do Oriente Médio posicionam a região como estratégica no momento atual.

Ambiente Geopolítico
No campo geopolítico, o Catar nos últimos anos intensificou a construção de relações internacionais e estratégicas com as maiores potências e suas lideranças mundiais. Este posicionamento, permitiu ao país a manutenção de canais diplomáticos, em especial, com a Rússia e o Ocidente.

A grande verdade, algumas tomadas de posição soaram contraditórias, entre elas, abrigar uma base do quartel-general militar norte-americana em seu território para facilitar as operações contra a al Qaeda e executar o papel de mediador de conflitos no Oriente Médio.

Quando se trata de Rússia, os laços comerciais continuam fortes. Um exemplo é a participação da Autoridade de Investimentos do Catar na companhia petrolífera russa Rosnef e investimentos no banco russo, VTB Bank. Porém, mesmo Doha buscando a manutenção de uma política externa de equilíbrio, uma clara posição vinda do Emir Tamim bin Hamad foi sentida no Kremlin. Na 49° sessão do Conselho de Direitos Humanos em Genebra, o Catar, representado pelo diplomata Sheikh Mohammed bin
Abdulrahman, se posicionou favorável ao reconhecimento da soberania do território ucraniano.

Esta firme declaração contrária à invasão, junta-se aos posicionamentos opostos entre a Rússia e o Catar em outras importantes regiões conflituosas, Norte da África e Oriente Médio. A Rússia possui interesses e forte influência na Síria e Líbia, simpáticos aos Emirados Árabes Unidos e não alinhados politicamente com o Catar.

Conjecturar sobre os recentes posicionamentos geopolíticos de Doha e relacioná-los com uma grande demanda por gás natural coloca o país do Golfo, o grande exportador mundial de GNL, como um potencial substituto para ocupar a confortável cadeira que Putin ocupou nas últimas três décadas.

Apesar de certas ranhuras, o Catar estrategicamente está evitando confrontar a política expansionista de Putin e ao mesmo tempo se apresenta como grande aliado não-OTAN nas aflições energéticas europeias.

Até o fechamento deste raciocínio, o objetivo central de Doha em estabelecer relações diplomáticas positivas com os principais atores da geopolítica mundial está consistente. Esperemos que até o final deste ano, o Catar não seja referência somente na organização da Copa do Mundo, mas também da diplomacia mundial.

Luis Rutledge

*É engenheiro de petróleo e possui MBA Executivo em Economia do Petróleo e Gás pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Analista de Geopolítica Energética e Membro Consultor do Observatório do Mundo Islâmico de Portugal. Pós-graduando em Relações Internacionais pelo Ibmec. Possui 16 anos de experiência em Projetos de Pesquisa e Desenvolvimento entre a UFRJ e o CENPES/PETROBRAS. Atua como colunista e comentarista de geopolítica energética do site Mente Mundo Relações Internacionais e colaborador de colunas de petróleo, gás e energia em diversos sites da área.

Fotografia | Qatar Petroleum