A Eterna Sombra da Primavera Árabe

Regimes teocráticos no mundo islâmico possuem como principal premissa serem sociedades governadas por líderes religiosos e por governos com poder concentrado num único líder. Hoje, em pleno século XXI, identificamos de forma cristalina tais características dentro do Oriente Médio e muito bem representado pelo Irã.

Após quatro décadas depois da Revolução Islâmica de 1979, o atual organograma de comando do Irã aponta para uma única figura – a do líder supremo iraniano Ali Khamenei. Este segue firme a islamização iniciada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, primeiro líder supremo e figura central na guinada política após os eventos de 1979.

Entretanto, o islamismo xiita do Irã vem, ao longo do tempo, perdendo sua legitimidade ideológica com grande parcela das novas gerações e, principalmente, com as mulheres. Não é de hoje que se observa uma juventude que não se sente representada pelos aiatolás e isto reflete-se diariamente nas ruas de Teerã. O regime que injetou leis islâmicas em todos os setores da sociedade iraniana testemunha hoje o surgimento de novas gerações que almejam concretas mudanças sociais e políticas no país e que estão totalmente desplugadas do tradicional Irã dos aiatolás.

Desde o início do século XX, o povo iraniano expressa, com veemência, seu posicionamento diante de líderes religiosos ou políticos, consciente das possíveis opressões oficiais que possam surgir de seus atos. Em 1901, o sheik Shirazi, maior líder religioso da época, liderou, através de um fatwa ou mandado religioso, o povo contra o xá Nasir al-Din. O episódio, conhecido como a Revolta do Tabaco, foi uma pequena demonstração de uma politizada nação que se moldava no Irã e, até os presentes dias, a chama da contestação continua forte em todo país.

O estopim para os recentes gritos coletivos iranianos ouvidos ao redor do mundo foi a estranha morte da jovem iraniana Mahsa Amini. A jovem havia sido detida pela polícia de costumes do Irã por não usar seu hijab corretamente ou muito frouxo. Os protestos após a morte da jovem iraniana de 22 anos desencadearam ondas anti-regime e, principalmente, protestos que centram os direitos das mulheres iranianas dentro do país.

Vale ressaltar que, apenas o regime Talibã exige o uso do hijab de forma que cubra completamente os cabelos em público. No entanto, a crescente indignação possui causas profundamente enraizadas que vão além véu.

Hoje, a República do Irã não imprime em toda a população uma legitimidade ideológica e política. Por mais que as autoridades do Irã se utilizem da polícia dos costumes contra as mulheres, a cada dia, mais jovens iranianas ou na diáspora não medem esforços para serem ouvidas contra a repressão das autoridades do governo.

Devemos perceber que o recado enviado pelas mulheres iranianas ao redor do mundo não diz respeito ao simples uso ou não do véu islâmico e sim, ao direito da livre escolha do uso. As mulheres não lutam pelo fim do hijab, lutam contra a imposição. Para as jovens iranianas o uso do véu islâmico, assim como outros costumes, se tornou a aceitação do regime vigente. O ato feminino de queimar véus representa quatro décadas de opressão e limitação dos direitos fundamentais da mulher islâmica.

As novas identidades das jovens iranianas se transformaram numa grande fonte de tensão entre a sociedade e o Estado. Existe um crescente descontentamento quanto ao papel social e político da mulher iraniana. As jovens de Teerã nasceram num mundo com internet, em contato com outras mulheres e que anseiam pelo mesmo nível de liberdade de outros países. Um sentimento pulsante de milhões de mulheres que não aceitam as regras discriminatórias impostas pelo Estado Islâmico iraniano ocupa todas as camadas da sociedade. Um crescente hiato se constrói entre a jovem sociedade iraniana e as rígidas leis dos aiatolás.

A República Islâmica do Irã vive uma crise de legitimidade e de autoconhecimento. O projeto teológico e político iniciado por Khomeini enfrenta protestos que se espalham rapidamente num mundo conectado e em que todos transmitem seu pensar e este pensar é coletivo.

A nova escalada de tensões em Teerã e em outras cidades reverberou em todo o mundo, podendo irromper igual sentimento em todos os países islâmicos que compartilham frustação e repressão sob regimes autocráticos.

A Primavera Árabe permanece viva na sociedade mulçumana.

Muhammad Bouazizi e Mahsa Amini nunca estiveram tão próximos.

Artigo de Luis Rutledge, membro do Conselho Consultivo do Observatório do Mundo Islâmico
Fotografia | Ozan Kose / AFP