A pertinência da Protecção do Património Mundial, sobretudo em caso de conflito, prende-se com a necessidade de combater o padrão segundo o qual, em situação de guerra, o património dos povos beligerantes é o objectivo mais apetecível, pois o legado histórico de um povo constitui a base referencial da sua cultura, pelo que a sua destruição acarreta a anulação do sentimento de pertença e a perda de referentes na relação com a sua história. Eis a razão pela qual a destruição do legado é uma das formas de subjugação mais eficazes, tendo vindo a ser adoptada diversas vezes ao longo da história. Se é verdade que a protecção do Património se inscreve em praticamente todos os Tratados e Convenções Internacionais, e que a mesma é inumerada vezes sem conta, é também verdade que a sua protecção real está condicionada a outros factores. É de salientar que o único caso até hoje de condenação por destruição de Património Cultural da Humanidade ocorreu em 2016, culminando numa pena de nove anos, com a atenuante de se tratar precisamente de crimes contra o património e não contra indivíduos. Por regra, um caso de condenação possui uma função dissuasora…
A destruição dos Budas de Bamiyan (2001) abriu o precedente aos ataques perpetrados pelo ISIS, anos mais tarde. Em julho de 1999, Mullah Mohammed Omar emitiu um decreto onde considerava que os Budas de Bamiyan deveriam ser preservados pelo seu valor turístico e económico para a região. Em Fevereiro de 2001, a decisão reverteu-se tendo por base um decreto ordenando a eliminação de todas as estátuas e santuários não islâmicos no Afeganistão. Após esta decisão, muitos dos Estados da Organisation of Islamic Cooperation (OIC) contestaram-na. O Japão e a Índia ofereceram-se para receber os budas e preservá-los, bem como a Tailândia, o Sirilanka e até mesmo o Irão, a oferta foi negada pelos líderes talibãs que demoraram 20 dias a destruí-los. Em 2006, a UNESCO financiou um projecto no valor de 1,3 milhões de dólares para a recolha dos pedaços de argila e de gesso com vista a viabilizar uma futura reconstrução.
Timbuktu (2012), considerada a cidade dos 33 santos pelos seus santuários homenageando santos da corrente sufista, foi alvo de destruição dos seus mausoléus pelo grupo extremista Ansar Dine com ligações à Al-Qaeda. A 1 de Abril de 2012, Timbuktu foi capturada por rebeldes tuaregues do Movimento Nacional de Libertação do Azauade (MNLA) e Ansar Dine. Cinco dias depois, o MNLA declarou a independência desta região do Mali como Estado de Azawad, o qual não foi reconhecido por nenhuma nação regional ou pela comunidade internacional. A 28 de Janeiro de 2013, as tropas governamentais francesas e malianas começaram a retomar Timbuktu aos rebeldes islâmicos. Al Mahdi, responsável pela brigada da moralidade (Hesbah), foi o primeiro homem a ser julgado por crimes contra o património, pelo Tribunal Penal Internacional ao abrigo do art.8 (2)(e) do Estatuto de Roma. Foi-lhe aplicada uma pena de nove anos de prisão e o pagamento de uma indemnização no valor de 2,7 Milhões de euros. As Nações Unidas apoiaram a reconstrução da porta da mesquita de Sidi Yahia, com financiamento conjunto da Suíça e da União Europeia.
Em 2003, o Museu de Bagdad foi alvo de pilhagem e destruição aquando da guerra entre os EUA e o Iraque. Os Estados Unidos foram fortemente atacados por nada terem feito para prevenir o saque, mesmo face ao pedido expresso do diretor do Museu para que este fosse rapidamente circundado e isolado. Não só as organizações internacionais consideraram o ataque previsível e controlável, como a própria comunidade artística americana alertou por diversas vezes o Departamento de Defesa e o Pentágono para a necessidade de proteger o Museu. Surgiram novamente apelos e preocupações quando se realizou uma reunião entre o American Council for Cultural Policy – organização sem fins lucrativos, criada em 2002, composta por antiquários, colecionadores e advogados politicamente influentes – e funcionários do Departamento de Estado. Entre as preocupações apresentadas pela ACCP constava a necessidade de alterar as restrições vigentes quanto à propriedade e à exportação de Antiguidades, alegando que as medidas em vigor no Iraque eram demasiado “restrictivas”. Os apelos da Comunidade Artística não só foram ignorados, como se permitiu que se tentasse contornar a lei internacional.
Para além do saque permitido, foram também bombardeados sítios arqueológicos, actos considerados pelo presidente Jacques Chirac como crimes contra a Humanidade. De acordo com o relatório “The Casualties of War the truth about the Iraq Museum” (2005) do Coronel Matthew Bogdanos, coordenador da investigação instaurada pelos EUA, este afirma: “francamente, aqueles que argumentam que as forças norte americanas deveriam ter feito mais para proteger o Museu apresentam um argumento convincente. O Governo dos EUA foi instado antes da Guerra a proteger o Museu”. No total foram pilhados 15.000 artefactos. Uma parte dos artefactos pilhados foi encontrada a caminho dos EUA, Israel, Europa, Suíça e Japão. Os esforços dos funcionários alfandegários, americanos, iraquianos e italianos, permitiram recuperar cerca de 5.400 itens.
Em 2014, o Museu de Mossul, que abrigava milhares de artefactos mesopotâmicos, foi também alvo de destruição e de saque, por parte do ISIS, tendo ficado em ruínas. Estima-se que, só no período compreendido entre Junho de 2014 e Fevereiro de 2015, o ISIS terá destruído 28 locais históricos e efetuado inúmeras pilhagens que inundaram o mercado negro de artefactos arqueológicos como forma de financiamento do grupo.
Em 2015, o sítio arqueológico da cidade Palmira, na Síria, foi ocupado, pilhado e destruído em 2016, pelo ISIS. O que foi salvo deveu-se à coragem e pronta acção de Khaled Al-Asaad, o responsável pela preservação de Palmira, que conseguiu retirar e esconder algumas das estátuas de maior relevância, tendo sido executado, a 18 de Agosto de 2015, por não divulgar o seu paradeiro. Durante dois anos, Palmira foi teatro de guerra, só foi definitivamente recuperada em 2017.
A cultura e o património cultural são das poucas vias que ainda permitem o reconforto de fruir uma herança histórica, intelectual e universalista, no sentido pleno da tradição humana, pela diversidade das suas propostas e pelo respeito e confronto com a alteridade. O que hoje somos é a consequência do fomos sendo ao longo da história do homem e é por isso que o apagar da memória torna impossível um futuro. Os crimes contra o património esvaziam a possibilidade desse futuro, porque lhe matam os alicerces.
Mafalda Garcia
* Estagiária do Observatório do Mundo Islâmico. Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais (FCSH)
* A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico.
Fotografia | Reuters/Khaled al-Hariri