Falar de paz e segurança no Golfo Pérsico implica, necessariamente, abordar as estratégias geopolíticas das grandes potências, os EUA e a China, mas também do papel da Rússia. Este foi um tema transversal às várias intervenções que tiveram lugar na conferência “A Cooperação nos domínios da paz e da segurança na região do Golfo Pérsico”, organizada pelo Observatório do Mundo Islâmico no passado dia 16 de novembro de 2023, no auditório da União de Associações do Comércio e Serviços (UACS), em Lisboa.
Como referiu Javad Heiran-Nia, Diretor do Grupo de Estudos do Golfo Pérsico do Centro de Investigação Científica e Estudos Estratégicos do Médio Oriente, a região do Golfo Pérsico “não pode ser considerada separadamente da ordem mundial”. Assim, à luz das estratégias das grandes potências — EUA e China —, bem como do equilíbrio de poderes que se joga hoje no mundo, como se garante a paz e a segurança na região do Golfo Pérsico?
Orientalização do Golfo Pérsico
O próprio Javad Heiran-Nia salientou que o mundo está a assistir a uma mudança de poder, do Ocidente para o Oriente, e da própria estratégia dos EUA. A atual ordem mundial baseia-se, pois, na “competição entre os grandes poderes” — com perda da hegemonia dos EUA e a emergência da China. Este quadro “levou Washington a definir um novo papel ao nível global e regional, incluindo na região do Golfo Pérsico”. Passou, assim, de uma estratégia de envolvimento para uma estratégia de ‘equilíbrio offshore’. Ou seja, apresenta uma postura menos centrada nas obrigações de segurança e mais focada na via diplomática.
Na sequência disso, defende Javad Heiran-Nia, “durante a presidência de Biden, estamos a testemunhar um aumento significativo na diplomacia, pelos atores regionais”. No caso da Arábia Saudita, esse fator resultou numa aposta no diálogo com o Irão. Por sua vez, Teerão encara um acordo com a Arábia Saudita, com a mediação da China, como uma forma de fortalecer a relação com Beijing, sendo que vê com bons olhos a substituição da presença dos EUA pela China.
A esta equação junta-se, claro está, a Rússia, como lembrou a Professora Sandra Balão, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), da Universidade de Lisboa. A especialista frisou que “o Irão, a Rússia e a China caminham numa direção comum”, procurando criar uma ordem global alternativa ao Ocidente, excluindo os EUA do acordo. A própria China tem uma visão para o mundo, um plano de longo prazo, ambicionando expandir o seu poder de influência, acrescentou José Carlos Calazans, Professor associado na Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais, da Universidade Lusófona.
Considerando este complexo enquadramento, o investigador Carlos Leone notou a existência de um processo de “orientalização do Golfo Pérsico”. “Mesmo que não haja uma nova ordem mundial, existem novas agendas e novos instrumentos. Uma tendência que foi reforçada pela pandemia e é motivada pela integração económica”, explica, acrescentando que este cenário é do interesse de todos: a China ganha poder, o Golfo também.
Os interesses económicos
Nestas novas agendas estão, inequivocamente, presentes os interesses de cariz económico. A China é um parceiro económico importante da Arábia Saudita e do Irão, como lembrou a Professora Sandra Balão: “A China tem interesses nestas duas regiões. Tem feito muitos investimentos e tem agido no campo diplomático, no âmbito da Grand Strategy da China”.
Neste âmbito, a energia representa um papel central, sendo que a energia do Irão figura no topo da agenda da China. Por outro lado, os minérios, e outros recursos, têm atraído a presença da Rússia na região.
A reconfiguração da ordem de poderes, e os vários interesses que se têm conjugado nesta geografia, confluem numa notória dinâmica de reconciliação e de interesse na desescalada dos conflitos. Sobre este tema, Riccardo Fabiani, Project Director, North Africa at the International Crisis Group, sublinhou o caso da Líbia: um país dividido em duas áreas, que não tem registado grandes conflitos, refletindo esse clima de reconciliação. Por outro lado, a Arábia Saudita está envolvida no processo de paz no Sudão e pretende estabelecer o diálogo, visando assumir um papel construtivo na região. Além disso, o Egito e a Tunísia estão a fazer reformas. O dinheiro está a fluir nesta zona do globo, havendo interesse numa estabilidade de longo prazo.
Mas isto não significa que não se verifiquem problemas, como o próprio Riccardo Fabiani recordou, adiante, na sua intervenção. Na Líbia, a reunificação do país ainda é um problema. Além disso, alguns países do norte de África estão a usar o medo do Irão para instigar a desestabilização e falta um plano para um acordo que resolva o diferendo entre a Líbia e o Sudão.
A relação entre o Irão e a Arábia Saudita
Um fator-chave para a estabilidade na região é, sem dúvida, a relação entre o Irão e a Arábia Saudita. Além do equilíbrio de poderes na atual ordem mundial — que leva, por exemplo, os EUA a apostar na via diplomática e no diálogo entre os dois países —, denota-se a existência de dois tipos de variáveis a considerar: as regionais e as internas.
Em termos regionais, referiu Javad Heiran-Nia, a Arábia Saudita não pretende ser a arena da competição entre os EUA e a China, numa ordem mundial em transição. Também não quer ser um alvo direto do Irão e dos seus aliados, numa possível guerra com Israel. Riade, por sua vez, tentará garantir os seus interesses e não pagar os custos de uma possível competição entre os grandes poderes da região.
Foi essa a mensagem que deixou o Embaixador do Irão em Portugal, Seyed Majid Tafreshi, no início da conferência. Afirmou que o seu país quer ser um key player na paz desta zona, procurando fomentar a amizade e a cooperação entre os países, uma mensagem que é reforçada na entrevista de Seyed Majid Tafreshi ao Observatório do Mundo Islâmico.
Nesse sentido, explicou Javad Heiran-Nia, o Irão parece estar disponível para aceitar as relações bilaterais entre a Arábia Saudita e Israel. O Diretor do Grupo de Estudos do Golfo Pérsico acrescentou, a este respeito, que a preocupação do país está mais centrada no aumento das alianças de segurança dos árabes no Golfo Pérsico com Israel, referida como a NATO Árabe. “Se existir uma aliança entre os EUA, Israel e os árabes do Golfo Pérsico, isso pode enfraquecer o equilíbrio de poderes e o Irão ficará a perder”, declarou.
Neste contexto, a Arábia Saudita tem procurado mostrar que a possível ligação com Israel constitui uma relação bilateral, e não uma ameaça contra o Irão.
Internamente, os dois países têm interesse em manter uma relação pacífica, também por motivos económicos. O Irão procura resolver os seus problemas económicos, aumentando o comércio bilateral com a Arábia Saudita. Riade, por sua vez, necessita de investimentos para concretizar a sua estratégia 2030. A ocorrência de conflitos com o Irão e os seus aliados poderiam ameaçar esse objetivo.
Tudo isto significa que se dissiparam os motivos de conflito? Neste quadro, o analista Javad Heiran-Nia lembrou que os dois países não abandonaram as suas preferências estratégicas. A Arábia Saudita entende que o Irão não deve desempenhar qualquer papel no mundo árabe. Isso é, aliás, importante para fortalecer a sua cooperação com os EUA e com os poderes do Ocidente. O Irão, por outro lado, não está disposto a fazer concessões à Arábia Saudita no que concerne ao Iémen.
Existe, pois, um compromisso baseado em objetivos táticos e de desescalada, mas o futuro do acordo depende diretamente da visão estratégica dos lados sobre ele e, claro, da mitigação das tensões.