Do conjunto de ameaças à segurança interna da União Europeia, é inevitável abordar a
situação a que a fronteira sul do território passou a estar exposta, tendo em consideração
o preocupante aumento da actividade terrorista proveniente do continente africano,
muito em particular da região do Sahel, protagonizada por organizações jihadistas
salafistas globais, como são os casos da Al Qaeda e do autoproclamado Estado Islâmico
(DAESH), e dos grupos afiliados. A situação agravou-se em particular a partir de 2019,
como resultado da derrota formal do DAESH nos territórios sírio e iraquiano por força
da intervenção da coligação internacional. Neste contexto, o continente africano surgiu
como alternativa à expansão das organizações jihadistas, que claramente têm
beneficiado dos inúmeros conflitos regionais ou das disputas religiosas e étnicas em
curso e do consequente enfraquecimento das suas lideranças e instituições, criando
indesejáveis condições para o surgimento de Estados falhados, verdadeiramente
potenciadores de santuários terroristas.
Em consequência dos acontecimentos mais recentes ocorridos, muito em particular, na
vasta região do Sahel, a segurança da Europa e da sua população passou a estar cada
vez mais exposta à instabilidade que grassa naqueles territórios. Mais do que nunca, a
defesa das suas fronteiras passou a ser uma prioridade para a qual as lideranças
europeias deverão apontar as suas prioridades.
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Ao longo dos dois últimos anos, algumas das filiais mais violentas do DAESH têm-se
expandido e consolidado a sua presença, sobretudo no Mali, no Burquina Faso e no
Níger, e também para sul, até ao Golfo da Guiné. Para os jihadistas, surge, agora, e pela
primeira vez, um novo alvo na sua “guerra santa”: as ilhas Canárias, que, segundo os
seus canais de propaganda, mais não são de que as “ilhas de Al Andalus” (VOZPÓPULI,
21 de Agosto de 2023), com a retórica de sempre: “a reconquista dos [seus] territórios e
a morte de todos os infiéis”. Este cenário, já de si dramático, tem vindo a agravar-se com
os mais recentes golpes de Estado registados no continente africano, de que é exemplo a
tomada de poder pela força das armas, de 26 de Julho, no Níger.
Os conflitos armados, as epidemias, a fome, as catástrofes naturais, o terrorismo e outras
emergências graves, muitas vezes numa combinação de elementos naturais e humanos,
são factores que inevitavelmente configuram uma ameaça que envolve tragicamente a
população civil. É nestes contextos, agravados por lideranças repressivas e pela limitação
de oportunidades de natureza económica, que é criada uma atmosfera fortemente
favorável à difusão da retórica jihadista salafista, levando a que a presença do DAESH e
da Al Qaeda, directamente ou através de grupos afiliados, seja marcada por uma
crescente actividade terrorista, mais mortífera do que em anos anteriores. No caso da Al
Qaeda, com a declaração formal de uma nova liderança – Seif al-Adel -, em consequência
da morte de Ayman al-Zawahiri, a organização alargou as suas filiais do Levante a
África, passando pelo Sul da Ásia, com a particularidade de, na actualidade, agirem com
bastante autonomia relativamente à organização central (Nation World News Desk, 2 de
Janeiro de 2023).
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Do ponto de vista da sua influência territorial, a filial da Al Qaeda no Iémen, conhecida
como Al Qaeda na Península Arábica (AQAP) continua a ser a mais perigosa e em
melhores condições de atacar o Ocidente. Igualmente preocupante é a acção da sua filial
na Somália, conhecida como Al-Shabaab, que tem apoiado financeiramente a liderança
central da Al Qaeda, e que desde há muito tempo tem manifestado o firme propósito de
atacar alvos norte-americanos e ocidentais em África e noutros territórios, o que levanta
a questão de uma nova dinâmica global protagonizada pela Organização.
A par da Al Qaeda, outros grupos terroristas, com destaque para as filiais do DAESH, o
seu principal concorrente pela hegemonia do jihadismo salafista global, têm vindo a
progredir muito rapidamente na região do Sahel e nos países da costa atlântica do
continente africano. Com a diminuição da presença de forças ocidentais nestes
territórios, a situação agrava-se, podendo mesmo criar condições favoráveis a acções
terroristas fora do continente africano (Voice of America, 29 de Dezembro de 2022).
De acordo com os dados do Índice Global de Terrorismo (GTI 2023), 48 por cento das mortes
resultantes de ataques terroristas a nível mundial ocorreram na África Subsariana, sendo
a região do Sahel a que mais sofre com o que é considerado como o crescimento mais
rápido e mortífero do mundo. O DAESH é responsável pelo maior número de baixas
registadas em grande parte da África, do Médio Oriente e da Ásia Central. A organização
é secundada pelo Al-Shabaab, na Somália, pelos Talibãs, no Afeganistão, e pela coligação
Jama’at Nasr al-Islam wal Muslimin (JNIM), conjunto de grupos filiados na Al Qaeda.
No Sahel e na Somália, a violência jihadista representou 77 por cento do total dos
acontecimentos relatados em toda a África, ao longo de 2022. Em particular no Burquina
Faso, no Mali e no Níger ocidental foi registada a maior escalada de eventos violentos
ligados ao terrorismo islamista, saldando-se no dobro das mortes provocadas, desde
2020. Em todos os países onde a violência jihadista tem sido registada – com excepção da
Nigéria – a tendência é ascendente em comparação com Dezembro de 2022, onde os
grupos terroristas têm beneficiado claramente da incapacidade das autoridades em lidar
com a situação. No Mali, foram registados 36 ataques, dos quais 80 por cento atribuídos
à coligação Jamaat Nasr al Islam Wal Muslimeen. No Níger, após o golpe de Estado de
26 de Julho, a tendência é novamente de subida, depois do abrandamento verificado em
Dezembro, último. No Níger, um mês após a tomada de poder pela Junta militar, os
grupos jihadistas intensificam os seus ataques, aproveitando a instabilidade reinante no
país, nomeadamente na chamada Zona das Três Fronteiras, entre o Níger, o Burquina Faso
e o Mali (DEUTSCHE WELLE, 22 de Agosto de 2023).
Os múltiplos e graves acontecimentos ocorridos ao longo dos últimos anos em toda a
região do Sahel poderão configurar um cenário de uma real ameaça, desde logo para a
Europa, a partir da sua fronteira sul, mas, também, para o resto do planeta, o que exige
uma pronta reacção por parte dos líderes mundiais na busca de parcerias que promovam
a estabilidade e a segurança a partir de ambas as margens do Mediterrâneo, onde,
segundo a análise do International Crisis Group, se concentrarão ao longo dos próximos
tempos alguns dos mais graves conflitos a nível mundial.
O sentimento de profunda preocupação manifestado pela Comunidade Internacional face
à rápida e crescente proliferação do terrorismo no Sahel Ocidental e a sua expansão até
aos países do Golfo da Guiné, é, agora, agravado pela revelação de novos santuários do
jihadismo salafista global.
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Os santuários jihadistas sempre desempenharam um papel importante nas actividades
dos grupos e das organizações terroristas, constituindo territórios onde os actores nãoestatais violentos se abrigam longe dos olhares e do controlo das autoridades, de modo
a planearem as suas acções. São, na verdade, “territórios operacionais seguros onde um
grupo é capaz de manter uma estrutura que pode apoiar as suas actividades
subversivas” (Innes, 2007).
A retirada das forças internacionais do Afeganistão, a partir de Agosto de 2021,
entendida pela Al Qaeda como uma significativa vitória da jihad global, tem vindo a
permitir à organização terrorista uma renovada margem operacional reforçada pela
presença de estruturas suas afiliadas em grande parte do continente africano. Aos
“velhos” santuários do terrorismo jihadista existentes no continente asiático, juntam-se,
agora, os do continente africano, expandindo, assim, o Movimento Salafista Universal.
Contrariamente às análises mais optimistas, o grande falhanço ocidental no Afeganistão
parece, pois, estar a dar um novo alento na caminhada do terrorismo jihadista rumo ao
chamado Califado Universal.
Mesmo às portas da Europa, o Sahel, com o maior registo de ataques e vítimas do
terrorismo a nível global, é objectivamente o actual epicentro da actividade do
terrorismo jihadista universal, sendo a região que se configura como a mais séria ameaça
à segurança e aos mais elevados valores civilizacionais. Esta proximidade geográfica
obrigará, assim, as lideranças do Velho Continente e as organizações representativas dos
Estados africanos a um forte envolvimento na gestão dos recorrentes conflitos em África,
o que passará, inevitavelmente, pelo apoio à implementação de profundas medidas
estruturais que conduzam a um inequívoco bem-estar das populações e à eliminação de
todos os factores que promovem o terrorismo, a criminalidade organizada e a corrupção.
Lisboa, 29 de Agosto de 2023
João Henriques
Investigador Associado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa
Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico
Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris