Com a morte do líder do Estado Islâmico Abu Ibrahim al-Hashimi al-Qurayshi numa operação liderada pelos Estados Unidos no início do mês de fevereiro, a chamada “guerra global contra o terrorismo” foi trazida mais uma vez à superfície pelos média e salientada no seio da comunidade internacional. O ataque militar autorizado pelo presidente Joe Biden resultou não somente na morte de al-Qurayshi como também na morte de membros de sua família e civis que estavam presentes na casa onde o líder estava escondido na Síria, próximo à fronteira com a Turquia. O número de mortes resultantes desta operação não é exato e a parte responsável por estas mortes ainda é debatida.
No que diz respeito às estratégias empregadas pelos Estados Unidos no combate ao terrorismo após os ataques de 11 de setembro, a abordagem militar sempre foi a preferência, movimentando esforços à escala internacional para conter a ameaça tanto dentro como fora de seu território. As intervenções no Afeganistão e no Iraque, avançadas durante o governo de George W. Bush, que se seguiram aos ataques em Nova York e em Washington, justificavam- se pela ideia de que certos territórios estavam mais suscetíveis ao desenvolvimento de organizações terroristas e, portanto, seria necessária uma intervenção externa para estabelecer uma mudança de regime nestes países, numa lógica de exportação do modelo democrático liberal que impera no Ocidente. Tal abordagem foi alvo de intensos debates acerca da natureza das estratégias de combate ao terrorismo e dos interesses por trás das mesmas.
Num mundo em que nenhum movimento internacional por parte de qualquer Estado é desprovido de interesses, questiona-se o papel do Ocidente, e em particular dos Estados Unidos, no desenhar da identidade islâmica após os ataques do 11 de setembro, e quais as intenções mais profundas por detrás da narrativa construída acerca das estratégias de contra terrorismo baseadas em abordagens militares em países do Médio Oriente e na mudança de regime nestes países, bem como se tais estratégias são realmente eficazes para o seu propósito.
Em primeiro lugar, a premissa de que as democracias são mais resilientes ao fenómeno do terrorismo não é clara nem incontestável. Partir do pressuposto de que grupos terroristas de inspiração religiosa surgem exclusivamente em Estados falhados do Médio Oriente é restringir o combate ao terrorismo em um contexto específico e, consequentemente, excluir sua abordagem global. Não há uma relação direta entre o regime de tais Estados e o surgimento de organizações terroristas, portanto importa pensar para além do combate ao terrorismo para possíveis outros interesses de atores terceiros na mudança de regime em países do Médio Oriente.
Além disso, a maneira como se deu a categorização dos alvos não seguiu aparentemente muitos critérios lógicos. A intervenção no Iraque em 2003 foi em muito justificada partindo do pressuposto de que grupos terroristas surgem em Estados falhados e possuem acesso a armas de destruição massiva – o suposto acesso da Al Qaeda a tais armamentos –, o que nunca foi provado na prática.
Para além disto, um problema que se coloca é que estes grupos terroristas são caracterizados precisamente por possuírem uma rede vasta que não se limita ao território de Estados específicos, há a associação destes grupos a mais de um Estado e, portanto, identificar Estados específicos como alvos principais nas estratégias de combate ao terrorismo parece, no mínimo, ilógico.
Se partirmos da natureza de organizações terroristas de inspiração islamista e olharmos para os motivos que levam os indivíduos integrantes destas organizações a se identificarem com o discurso perpetuado pelas mesmas, é possível verificar um certo nível de reação a comportamentos externos. Por outras palavras, o fenómeno do terrorismo tem de ser visto também como um movimento reacionário. No caso do 11 de Setembro, esteve muito ligado ao modo como estes indivíduos percebiam o exercício de poder dos Estados Unidos, tanto num contexto específico, o Médio Oriente, como num contexto global, o protagonismo norte-americano e a narrativa que impera internacionalmente – a narrativa liberal – que não faz parte do contexto histórico e social de países islâmicos.
Neste sentido, fica claro que os ataques do 11 de Setembro foram, em alguma medida, uma contestação ao poder dos Estados Unidos. Alwaleed bin Talal, príncipe da Arábia Saudita, em sua oferta de dez milhões de dólares a Nova York após os ataques, referiu que “em tempos como este, devemos tratar dos problemas que levaram a tal ataque. Acredito que o governo dos Estados Unidos da América deveria reexaminar suas políticas no Médio Oriente e adotar uma postura mais equilibrada em relação à causa palestiniana”. Após este discurso, coincidentemente, a ajuda financeira foi recusada pelo prefeito de Nova York.
A questão que se coloca, portanto, é em que medida os fenómenos terroristas ligados ao fundamentalismo islamista partem da perceção de indivíduos que partilham uma determinada identidade religiosa e cultural, em relação às tentativas de imposição e dominação de narrativas que não encontram eco na história do mundo islâmico, e, portanto, não fazem sentido para estes indivíduos e passam ser contestadas. Neste sentido, a abordagem militar deveria ser questionada enquanto abordagem exclusiva no combate ao terrorismo.
Uma estratégia seria criar alternativas para que os sujeitos que se sintam atraídos pelo discurso extremista, ou que sejam propensos a realizarem ataques terroristas, possam manifestar suas insatisfações de forma pacífica. Para além disso, mapear as causas que levam à radicalização desses sujeitos pode ser um grande aliado à abordagem militar nas estratégias de combate ao terrorismo, e neste sentido importa olhar para como a perceção destes indivíduos sobre atores como os Estados Unidos, pode ser um gatilho para o avançar de novas atividades terroristas e para o crescimento destas organizações.
A morte do líder do Estado Islâmico Abu Ibrahim al-Hashimi al-Qurayshi poderá vir a ser uma oportunidade para percebermos como a estratégia dos Estados Unidos não é eficaz no combate ao terrorismo, precisamente porque tem o potencial de engatilhar novas células terroristas a perpetuarem a missão dessas organizações, fazendo com que seja impossível destruir a grande ideia por detrás do terrorismo deste género.
Portanto, devemos refletir como a morte de al-Qurayshi será interpretada pelos indivíduos que possuem o potencial de expandirem o Estado Islâmico através de outras células ao redor do mundo: como um desencorajamento de sua missão ou como mais um movimento unilateral dos Estados Unidos em suas estratégias de controlo sobre o Médio Oriente?
Caio Ferraz Levy
*Estagiário do Observatório do Mundo Islâmico. Frequenta o mestrado em Estudos Internacionais no ISCTE
Fotografia | Getty Images