A crise que o mundo esqueceu

A crise humanitária que perdura há mais de uma década no Iémen não tem um fim à vista. Em parte, porque se encontra distante dos olhares do mundo, mas também porque nenhuma das partes beligerantes na guerra civil se encontra disponível para fazer qualquer tipo de concessões.

O conflito

O Iémen não escapou à vaga de revoltas sociais que se fizeram sentir em 2011, no contexto das Primaveras Árabes. O Presidente Saleh, que há muitos anos ocupava a presidência, entregou o poder ao seu delegado, Abdrabbuh Mansur Hadi. Contudo, Hadi sentiu imediatamente várias dificuldades, desde logo pela fidelidade que as forças armadas tinham para com o Presidente autoritário deposto, mas outras dificultaram o exercício da presidência – como os ataques de jihadistas e os problemas económicos que o país enfrentava.

Os houthis apressaram-se em capitalizar com esta fragilidade política e com a falta de fidelidade que as forças armadas lhe tinham através do Ansar Allah, os “Partidários de Deus”. Assim, a falta de autoridade de Hadi abriu brechas para que outras fações mais conservadoras lutassem pelo poder.

Em março de 2015, o presidente Hadi foi forçado a fugir, após o Ansar Allah ter tomado a capital iemenita, Sanaa. Esta conquista gerou um grande incómodo na vizinha Arábia Saudita, que receava que a tomada do poder por parte dos houthis implicasse que o Iémen se tornasse um Estado-satélite do seu rival na região, o Irão. Este receio resultou numa campanha aérea destinada a derrubar os houthis e restaurar o governo de Hadi, que contou com o apoio de outros estados árabes, mas também apoio dos Estados Unidos, Reino Unido e França.

Os houthis aliaram-se ao antigo presidente Ali Abdullah Saleh para formarem juntos um “conselho político” para governar os territórios que se mantinham seus, mas esta aliança duraria pouco tempo.

Saleh rompeu a aliança com os houthis e convocou os seus seguidores para combatê-los, acabando ele próprio morto e as suas tropas derrotadas. Em 2018, os partidários de Saleh – agora aliados às forças de coligação lideradas pela Arábia Saudita – lançaram juntos uma grande ofensiva contra os houthis para recapturar a cidade de Hudaydah, no Mar Vermelho. O seu porto é a principal salvação para milhões de iemenitas em risco de fome.

Após seis meses de luta feroz, os dois lados concordaram no estabelecimento de tréguas. Em 2021, a ONU pediu um cessar-fogo, mas já este ano a guerra assumiu contornos ainda mais avassaladores com novos bombardeamentos em territórios da coligação. Esses alvos eram primariamente instalações petrolíferas, mas tiveram repercussões civis e resultaram na denúncia do Irão pela Arábia Saudita junto das autoridades internacionais. O Irão foi etão acusado de canalizar armamento para os houthis em violação de um embargo imposto pela ONU, algo que os iranianos negaram.

Inversamente, a coligação levou a cabo milhares de ataques aéreos, também eles denunciados pela ONU como tendo resultado na morte de milhares de civis. O “toque duplo” de que são acusados,  um primeiro ataque que atinge os rebeldes, seguido de um outro que visa atingir os civis que vão em seu socorro, foi negado também por ambas as partes.

O governo oficial do Iémen, sediado na cidade de Aden, operava enquanto Hadi se encontrava na Arábia Saudita sob asilo. Este governo viria a ser expulso pelo chamado Conselho de Transição do Sul, um grupo separatista pró-independência do Iémen do Sul. Após esta expulsão do governo oficial do Iémen, a Arábia Saudita procurou reinstalar o poder e elaborou o Acordo de Riad de 2019 que não foi totalmente empregue. Consistia na oferta de um lugar para Conselho de Transição do Sul no governo expulso de Aden em troca da colocação das forças separatistas sob o comando do presidente Hadi.

Não sendo aplicado, este acordo falha em resolver mais um impasse na longa e devastadora guerra civil que um dos países mais depauperados do mundo atravessa.

Os números da guerra

O verdadeiro custo deste conflito é humano. Entre as mortes, as vítimas da fome e os deslocados perfazem-se números que classificam o Iémen como a pior crise humanitária do mundo. As Nações Unidas estimam que cerca de 24.1 milhões de pessoas necessitam de apoio humanitário. Estes valores representam cerca de 80 % de toda a população do país.

Estimam-se cerca de 400 mil mortos até ao final de 2021. 70% destas são crianças e a grande maioria destas não se deve ao conflito armado direto. Cerca de 60% das mortes contabilizadas desde o início do conflito devem-se a doenças que poderiam ser prevenidas; as restantes devem-se a ataques armados diretos. Entende-se assim a razão pela qual esta é uma crise humanitária com solução.

A maior causa de mortalidade da população do Iémen é uma consequência indireta do conflito. É a fome, a falta de cuidados e de um sistema de saúde, a falta de água potável. O conflito entre a Rússia e a Ucrânia também causou disrupções no fornecimento de trigo ucraniano, o que irá certamente ser uma agravante a este problema. Como se tudo isto não bastasse o país foi vítima do maior surto de cólera alguma vez registado, com cerca de 2.5 milhões de casos suspeitos e cerca de 4000 mortes registadas desde 2016.

No que à fome importa, de acordo com o World Food Programme, cerca de 16.2 milhões de habitantes estão numa situação de estabilidade quanto à disponibilidade alimentar. Esta agência que integra as Nações Unidas alertou inclusive para o facto de cerca de 5 milhões de pessoas estarem à beira de uma situação de fome, posição em que cerca de 50.000 se encontram já. O agravar desta escassez alimentar deveu-se ao escalar de preços de bens – que eram já escassos -, escalada que se registou entre os 30% e os 70%, colocando em risco dois grupos frágeis que têm sido das principais vítimas: crianças e mulheres grávidas ou em processo de amamentação.

Os deslocados são mais um grupo de pessoas que se colocam nesta posição de fragilidade acrescida. Apenas nas duas primeiras semanas deste ano, quase 4000 mil pessoas foram forçadas a deslocarem-se devido ao conflito, de acordo com os dados da Agência para os Refugiados das Nações Unidas. Esta agência prevê também que 67% dos deslocados internos, ou cerca de 2.6 milhões de habitantes ficaram mais suscetíveis a sofrerem de fome e que os diferentes grupos sociais são afetados de maneira dispersa por esta crise, com as mulheres e crianças como as principais vítimas a serem forçadas a deslocarem-se internamente.

Artigo de Guilherme Gonçalves
Fotografia | ARHAB, Yeyha / EPA para o CICV