Para quase dois mil milhões de muçulmanos este Ramadão será inigualável: pela primeira vez na história da era contemporânea são pois confrontados com o confinamento obrigatório, que para além do desafio próprio das restrições que impõe, coloca sérios entraves nos rituais do mês sagrado, nas dimensões familiar e do culto.
O Ramadão é o quarto pilar do Islão e o nono mês do calendário islâmico. Diz a palavra de Deus, plasmada no Alcorão, que o Ramadão é o mês em que as portas do paraíso se abrem e é um mês de graça e de bênçãos, no qual as misericórdias de Deus se estendem sobre a terra.
Etimologicamente deriva do termo árabe ramida, que significa “ser ardente”, i.e. simbolicamente o Ramadão permite abrasar os pecados com boas obras.
Os muçulmanos jejuam: abstêm-se de comer, fumar, beber, praticar relações, enquanto dura o dia, comendo frugalmente após o pôr-do-sol.
O jejum pratica-se em razão de várias crenças, quer sejam estas de ordem política, moral, medicinal e sobretudo religiosa, aliás não sendo o Islão a única religião do livro que impõe sacrifícios e interdições alimentares.
Os fins do jejum obrigatório são sobretudo quatro: i) sentir a omnipresença de Deus ii) passar voluntariamente o sacrifício que outros passam por força da necessidade iii) o ensino do autodomínio iv) purificação espiritual – ritual simbólico de renúncia às necessidades mundanas e foco na espiritualidade.
Neste ano de 2020 e ao arrepio da tendência dominante é pedido aos fiéis para além do sacrifício da fome, durante todo o dia, que se abstenham de ir à casa de Deus e uma monstruosa e abrupta renúncia às necessidades mundanas.
É certo que Deus está entre nós e não somente numa qualquer Mesquita, podendo cada um de nós procurá-lo nas nossas casas. No entanto é impossível ignorar que há certos locais que convidam à espiritualidade, contendo essa visita o amplo e não menos importante e pedagógico fenómeno da socialização, tão característico desta época.
É preciso pois não esquecer que o Ramadão também se projecta através dos múltiplos laços que a fraternidade da partilha do iftar (quebra do jejum) convoca, numa afirmação pública de religiosidade, que por ora esbarra no dever de confinamento, sugestionando um individualismo e um recolhimento, incompatíveis com a função agregadora das orações em conjunto.
Não tergiverso: a dimensão mística e transcendental do Ramadão assenta numa prática diária e formalista, existindo uma espécie de renovação espiritual constante quotidiana e o rigor no cumprimento do jejum e das orações confere eficazmente outra força e firmeza à praxis e por conseguinte à fé, não a esvaziando.
No plano da experiência pessoal poderá dizer-se que o Ramadão atrai, também por ser exigente. Porque é que partimos do pressuposto que ninguém aceita grandes exigências, especialmente em contexto religioso? Afinal, a fé é capaz de feitos extraordinários. Atesto que desta quadra se extraem inúmeros benefícios do ponto de vista espiritual.
Momento ideal para a reconciliação, para a união e valorização familiar, correcção pessoal e caridade, é tempo dos fiéis se encherem de jubilo e dar a alguém que tenha sido esquecido um lugar nos seus corações – nem que seja virtualmente!
A propósito da era virtual não me coíbo de assinalar o que de comum têm o isolamento e o Ramadão, que é o despojar de algo que tomamos por garantido e que tem naturalmente como consequência a real valorização das riquezas que nos rodeiam – refiro-me à família, à natureza, v.g. entre outras.
Em tempos difíceis de pandemia, vale lembrar Ibn Sina (Avicena) – médico e filósofo árabe – e pai da medicina moderna, que disse:
“A imaginação é a doença. A tranquilidade é a metade do remédio. E a paciência é o primeiro passo para a cura”.
E haverá melhor forma de superar esta provação, do que com a paciência – seiva e alimento para a alma, esperando melhores dias?
Que o Ramadão de 2020 cultive no coração de cada um de nós as sementes típicas deste mês atípico: a da paciência, da introspecção, e da disciplina. Ameen
Khalid Sacoor D. Jamal é
Secretário da Assembleia-Geral do Observatório do Mundo Islâmico
Dirigente da Comunidade Islâmica de Lisboa
Residente no programa da Antena 1 E Deus Criou o Mundo