Em 2011, a Etiópia iniciou um projeto de enorme magnitude: a Grande Barragem do Renascimento Etíope. No ano transato, 2021, Seleshi Bekele, o ex-ministro para a Água, Irrigação e Energia etíope, anunciou que a construção do projeto, que se tornará na maior barragem do continente africano, já teria ultrapassado os 80%.
Para a população etíope, a nova barragem pode vir a provar-se vital para o seu desenvolvimento e qualidade de vida, sendo que o país situado no Corno de África vê-se frequentemente afetado por falhas elétricas, por vezes de longa duração, prejudicando gravemente a sua larga população de 115 milhões de pessoas, e dificultando o seu crescimento económico e a sua evolução social. Assim, a nova fonte de energia hidráulica em construção proporcionará enormes recursos energéticos essenciais para o desenvolvimento, de que este país tanto necessita.
Como foi dito, a barragem encontra-se em construção desde 2011, tendo vindo a ser alvo de forte contestação por parte do Egipto e do Sudão. Os dois países chegaram a recorrer a instâncias internacionais, nomeadamente ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, apelando a que este órgão refletisse e se pronunciasse sobre o assunto.
Quanto ao Egipto, desde que a história recorda, a população residente na área depende em grande medida das águas do Nilo. Nos tempos que correm, acima de 90% da população egípcia vive nas margens do rio. Assim, compreende-se a necessidade do Estado de garantir que o fluxo de água do Nilo não seja diminuído. A redução deste fluxo pode ter implicações tanto agrícolas como elétricas, e mesmo no abastecimento de água para as dezenas de milhões de pessoas que habitam as suas margens.
Para o Sudão, os problemas são similares aos do Egipto, na medida em que a barragem etíope coloca em causa o abastecimento de água do país, que também depende do Nilo. Contudo, ao contrário do Egipto, a posição sudanesa sofreu alterações. Em fevereiro de 2020, Yasir Abbas, o ministro dos Recursos Hídricos do Sudão, classificava o empreendimento como benéfico para os sudaneses, argumentando que a barragem tornaria o fluxo do Nilo mais previsível, favorecendo tanto a agricultura, como o setor elétrico. Este último aspeto é particularmente importante, visto que o Sudão, como muitos países em África, também se vê frequentemente afetado por falhas elétricas.
No entanto, no seguimento de conversas inconclusivas no seio da União Africana entre a Etiópia, Egipto e Sudão, a posição deste último alterou-se. Mesmo quando se mostrava favorável à construção, o Sudão reconhecia que havia problemas que deveriam ser tratados, mas não os via como grandes entraves e até parecia acreditar que a sua resolução não causaria grandes perturbações nas suas relações com a Etiópia. Entretanto, Abbas alterou a sua opinião, argumentando que a não resolução desses problemas poderiam pôr em causa a segurança do seu país. Problemas esses relacionados com a quantidade de água retida na barragem e o enchimento da mesma. Assim, entende existir completa necessidade na procura de um acordo entre todas as partes, com a inclusão de mecanismos para resolução de disputas.
A possibilidade de conflito militar desencadeado pelo confronto de perspetivas entre os três envolvidos não pode ser ignorada. O Sudão, fazendo fronteira com a Etiópia, poderia colocar uma invasão em cima da mesa, apesar do seu exército parecer menos capaz que o exército etíope – a diferença não é significativa e poderá ver uma possível aliança com o Egipto, cujas capacidades militares se encontram bastante acima das etíopes. Apesar do Egipto não fazer fronteira com a Etiópia, uma aliança com o Sudão poderia oferecer passagem terrestre para o inimigo (sem mencionar a força aérea egípcia, que, diga-se, é bastante capaz).
É comum ouvir-se falar que as guerras do futuro serão em torno da água, e já existem vários focos de possível conflito relacionado com este recurso. É o caso da India e do Paquistão, que apesar de que desde a repartição serem Estados antagónicos, parece nascer este novo tema nas suas disputas. Outro exemplo envolve a Turquia, Síria e o Iraque, com os rios Eufrates e Tigre, ambos com as suas nascentes em território turco, mas de enorme importância para os outros dois países – questão esta que já viu momentos de cooperação, mas também instâncias em que a possibilidade de conflito armado mostrava-se bastante presente.
Embora estes problemas e disputas existam, e provavelmente se mantenham ainda num futuro próximo, existe também espaço para cooperação. O empreendimento etíope pode ser bastante valioso para os três países, desde que seja conduzido de forma cooperativa e a favor de todas as partes interessadas.
A barragem poderá servir como uma importante fonte de energia elétrica para o Sudão, um recurso essencial de que tantas vezes o povo sudanês se vê privado. Quanto ao Egipto, Hamid Ali, enquanto desempenhava funções de professor associado e chefe do Departamento de Administração Pública da Universidade Americana do Cairo, disse que “o Egipto deveria utilizar a barragem para se abrir para África”, usufriundo desta oportunidade para promover trocas comerciais com outros países africanos. Ali referiu ainda que “que ambos os países têm algo a dizer no futuro de um e de outro e é de seu proveito encontrar formas de negociar”.
Quanto à Etiópia, os seus problemas – desde a pobreza que a assola, às constantes falhas energéticas de que sofre, às suas insuficientes produções agrícolas e à guerra civil que a devasta – são razões para procurar entendimentos amigáveis com estes dois países. Os seus líderes têm reconhecido esta necessidade e têm frequentemente tomando a iniciativa ao reconhecer publicamente que a barragem traz problemas que devem ser resolvidos por meio do diálogo, reiterando que a sua construção não tem o objetivo de prejudicar ninguém.
Apesar das questões ainda em aberto, e do contínuo desacordo sobre a obra etíope, parece existir a possibilidade de que os efeitos positivos da barragem ultrapassem os negativos para estes três países. Para além de vantagens económicas que poderá trazer, pode servir a barragem pode servir como veículo diplomático e, assim, aproximar Egipto, Sudão e Etiópia em âmbitos cooperativos.
Como mencionei no início, a Grande Barragem do Renascimento Etíope já está numa fase muito avançada da sua edificação, não parece haver qualquer possibilidade da Etiópia reverter o processo e perder o seu grande investimento. No que depender dos etíopes, a barragem vai ser utilizada para os fins que a conceberam, independentemente das posições sudanesas e egípcias. Assim, mostra-se no melhor interesse dos envolvidos, o contínuo diálogo e entendimento e o evitar de qualquer escalada conflitual que possa desembocar numa situação nada positiva nem para os Estados em questão, nem para a própria região.
Duarte Loureiro
*Estagiário do Observatório do Mundo Islâmico. Frequenta a licenciatura em Relações Internacionais na Universidade Lusíada de Lisboa
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