A escalada até às eleições presidenciais de França, em abril de 2022, tem sido marcada por um figura polémica, mesmo antes de comunicar oficialmente a sua candidatura. Após meses de especulação, Éric Zemmour anunciou a dia 30 de novembro de 2021, através das suas redes sociais, que é candidato a Presidente da República Francesa. Mas quem é esta figura, que muitos apelidam de “o Trump francês”, e pretende desafiar Emmanuel Macron na corrida ao Palácio do Eliseu?
Seria errado tratar Zemmour como “só mais um político”. Filho de pai e mãe argelinos, de origem judaica, o pied-noir é uma figura que tem ganho uma considerável atenção ao longo dos seus anos de carreira, sendo considerado um intelectual aos olhos do público, apesar das suas controvérsias. Depois de concluir os estudos no Instituto de Estudos Políticos de Paris, começou a sua carreira jornalística no jornal Le Quotidien de Paris. Mais tarde, juntou-se ao Le Figaro, tendo saído no ano de 2021.
Porém, a sua carreira não se resume apenas ao seu percurso como colunista. Ganhou também atenção enquanto comentador político na televisão e na rádio, tendo participado em programas como o Zemmour et Naulleau ou o Z comme Zemmour. Finalmente, Zemmour escreveu vários livros, sendo a sua obra de maior sucesso “O Suicídio Francês” (título original, Le Suicide Français), onde descreve o gradual declínio de França desde a década de 70.
Agora entra na vida política com um grande objetivo em mente: ser o Presidente de uma das maiores economias da Europa. Juntamente com o seu novo partido, Reconquista (Reconquête), Zemmour procura preencher o espaço da extrema-direita em França que tem sido dominado pela família Le Pen, antes por Jean-Marie, e, ultimamente, pela sua filha, Marine, atual presidente da Frente Nacional.
Os grandes temas da sua agenda política são questões associadas à imigração e ao Islão. Zemmour deseja, acima de tudo, preservar o sentimento de ser francês, e reconquistar “o melhor país do mundo”, que sente estar a perder a sua essência desde algum tempo atrás. Uma das causas que aponta para esta sua visão é o crescimento do Islão em França, tendo rotulado a religião como algo incompatível com a França e com os valores ocidentais. “Não nos deixaremos dominar, subjugar, conquistar, colonizar”, palavras de Zemmour no vídeo de apresentação da sua candidatura. Eis aqui aquilo em que nos queremos focar – o uso da islamofobia como ferramenta para fazer política.
O termo islamofobia têm sido mencionado cada vez mais nos últimos anos, especialmente após os acontecimentos de 2001. Várias são as definições que encontramos para explicar, de formas diferentes, do que se trata esta noção. De uma forma mais ampla, podemos pensar na islamofobia como uma visão negativa motivada pelo medo/ansiedade contra indivíduos e grupos de muçulmanos, baseada em estereótipos e pré-juízos, e que conduz a atitudes de desprezo. Existe uma ideia-chave que devemos reter desta visão – o medo.
Com os avanços da Globalização, o nosso mundo está cada vez mais interligado e diversificado, com crescentes interações entre pessoas de diferentes origens, seja nacional, social, cultural, religiosa. Com a global migração de muçulmanos para o Ocidente, muitas vezes forçadas por motivos indesejáveis, estes enfrentam agora problemas complexos em sociedades multiculturais e seculares. Apesar de vivermos num mundo globalizado, ainda é difícil para muitos conviver com a diversidade, algo que, para certos grupos, se torna difícil de aceitar; e mais ainda, algo difícil tolerar. Temos grupos, movimentos, que são alimentados por este sentimento de desprezo, e que tentam estimular as suas visões contra “o desconhecido” junto das massas. Procuram agir sobre a forma de ameaças pessoais, manifestações públicas, provocações verbais, entre outros.
Estes grupos buscam usar argumentos que permitam espalhar a ideia de que estas pessoas, que possuem uma fé/origem diferente das deles, chegam para fazer mal aos nativos e destabilizar o país – que elas são um inimigo público, e que devem ser temidas como tal. Tais falsas generalizações chegam a penetrar na mente das pessoas, colocando-as num estado de ansiedade e intolerância, acabando por polarizar a sociedade, entre aqueles que são a favor da presença dos muçulmanos no seu país, e aqueles que os desejam ver partir o quanto antes, o que leva a que a noção daquilo que é verdadeiramente o Islão se perca, fazendo com que a sociedade seja “envenenada” por uma categorização distorcida da religião.
Zemmour é acusado por muitos por incentivar ao ódio e à discriminação contra a comunidade muçulmana em França, ao expor que, na sua ótica, o país está a ser dominado pelos migrantes, e que o Islão ameaça destruir os valores franceses. O próprio refere muitas vezes o termo “a grande substituição” (originalmente em francês, le grand remplacement) um conceito associado a uma teoria da autoria de Renaud Camus, que faz uma análise da situação demográfica, não só em França, mas também na Europa, por exemplo, à luz da diferença de dimensão entre as famílias dos europeus para as típicas famílias muçulmanas.
A hipótese de Renaud aponta para um processo de substituição dos cidadãos de origem francesa (e outros europeus também) por uma população não europeia, oriunda, principalmente, da África Subsariana e do Magreb. Para Zemmour, França vê-se a braços com uma situação de guerra, em que a religião muçulmana ameaça destabilizar o modo de vida dos franceses e destruir aquilo que, para si, é a França autêntica.
França possuiu uma das maiores comunidades muçulmanas da Europa, fruto do seu domínio colonial, exercido sobretudo nas regiões de África e do Médio Oriente. Trata-se também de um país onde a expressão radical do Islão encontra vários seguidores e que constitui uma ameaça à segurança do país. Nos anos 80 temos o primeiro incidente associado ao extremismo religioso, devido à intervenção da França na guerra civil do Líbano. Depois, nos anos 90, uma série de ataques foram executados em solo francês pelo Grupo Islâmico Armado, uma organização que tinha como objetivo derrubar o governo argelino.
Infelizmente o país não é estranho a ataques terroristas de matriz islâmica, sem esquecer que na década passada muitos foram os que acabaram por ser vítimas de ataques desta natureza, e ainda mais os que foram feridos. Exemplos não faltam, e reparamos que há vários tipos de armas que são usadas para instaurar o pânico: temos o ataque em 2011 ao jornal Charlie Hebdo, com uma bomba incendiária; mais tarde um novo ataque, em 2015, já com armas de fogo, e o ataque ao teatro Bataclan, no mesmo ano, onde vários foram fuzilados e ainda mais foram feridos; o atentado em Nice, no ano de 2016, onde uma viatura pesada invadiu as celebrações do dia da Bastilha e tirou a vida a centenas; e mais uma vez em Nice, em 2020, onde três pessoas foram mortas por um homem que atacou uma igreja com uma arma branca.
Uma das possíveis razões que podemos apontar para a ocorrência destes ataques são as políticas internas seculares de França (Laïcité), que os jihadistas consideram ser hostis para com o Islão. Outra razão é a crescente polarização no seio da sociedade francesa, que têm visto um aumento do ódio e o crescimento de tensões contra os muçulmanos no país. Macron, em 2020, apresentou um projeto de lei contra o “separatismo islâmico”, deixando claro que o que passava em França, e também noutras partes do mundo, não era um problema do Islão, mas sim do radicalismo. Contudo, esta não é a visão de todos. Para políticos como Zemmour, que tomam uma diferente abordagem, a religião do Islão como um todo está associada a estes ataques, e cada muçulmano constitui uma ameaça à segurança nacional.
Há uma simplificação e generalização do assunto, que depois é usada como forma de fazer política, instaurando o medo nos votantes e manipulando a realidade. É frequente que Islão e fundamentalismo islâmico sejam confundidos, tomando o todo pela parte – o que é errado, pois os muçulmanos com visões mais radicais da sua religião não representam toda a comunidade. O uso desta arma política, a islamofobia, acaba por ser um tiro no pé, pois o problema não são os radicais violentos, mas sim os extremistas religiosos. E o populismo que move estas ideias simplistas só aumenta as posições extremas.
O discurso pautado pela islamofobia que encontramos em Zemmour arrisca-se a exaltar os membros mais radicais da comunidade muçulmana em França, mais sensíveis a críticas à sua religião, o que por sua vez resulta no aumento da falta de segurança e na possibilidade de futuros ataques de caráter terrorista. Este padrão de discurso não melhora o estado da segurança em França e, pelo contrário, alimenta a intolerância religiosa e a estigmatização dos muçulmanos no país. Apesar de Zemmour, na sua visão, desejar salvar os franceses do trágico destino que poderá vir a concretizar-se, como menciona na apresentação da sua campanha, o seu discurso discriminatório poderá, na realidade, vir a fazer de França um país ainda mais inseguro. Não é possível prever o futuro, mas as ações de Zemmour e dos seus apoiantes arriscam-se a despertar novos ataques por parte de grupos extremistas: aqueles que seguem uma agenda política com aspiração religiosa e que tomam uma abordagem fundamentalista do Islão.
As ideias também são nefastas para a segurança e o risco de ganharem protagonismo torna-as uma ameaça para a segurança coletiva. A preocupação é real, baseado no histórico de ataques terroristas de França. Este ódio perpetuado por aqueles que associam os fundamentalistas a toda a religião do Islão poderá alimentar o ódio já existente nos radicais religiosos, causando uma espiral destrutiva que ameaça a segurança da nação francesa. É necessário, por isso, olhar para a situação de forma atenta, com cautela, e esperar que não se repitam situações trágicas.
Miguel Toscano
*Estagiário do Observatório do Mundo Islâmico. Frequenta a licenciatura em Relações Internacionais na Universidade de Évora
Fotografia | Julien de Rosa / AFP