Desde 2019 que os destinos do Sudão estavam nas mãos de uma aliança formada entre as forças armadas e uma junta civil – que constituíam o Conselho Soberano do Sudão. Contudo, no passado dia 25 de outubro, esta débil aliança governativa colapsou.
O golpe de Estado militar levado a cabo pelo General Abdel Fattah al-Burhan conseguiu dissolver o governo, prendendo o então primeiro-ministro Abdalla Hamdok e outros governantes, declarando, por fim, estado de emergência nacional.
Em abril de 2019, na sequência de um outro golpe de Estado, que depôs Omar al-Bashir, o Conselho Soberano do Sudão comprometeu-se a levar a cabo um processo de transição democrática até às eleições de 2024. Eleições estas em que se procederia a uma transição pacífica e regulada do poder para um governo eleito democraticamente.
É ainda precoce avaliar a continuidade e futuro do projeto de transição democrática no Sudão, mas o alerta para o distanciamento da democracia no país já vem tarde. O golpe militar do passado mês de outubro surpreendeu apenas os mais desatentos. A verdade é que no mês anterior houve uma primeira tentativa de golpe de Estado que, apesar de ter fracassado, foi um prenúncio do derrube do frágil regime sudanês. Desde 1952, o Sudão foi palco de 17 golpes de Estado. Só neste ano, já assistimos a dois.
Contudo, e apesar do alarmante número de golpes de Estado que ocorreram no país, estes processos de subversão política são uma tendência transversal a vários outros Estados africanos.
Só este ano, no espaço de seis meses, já assistimos a seis golpes de Estado em África. Houve golpes bem-sucedidos em abril no Chade, em maio no Mali e em setembro na Guiné, além das tentativas fracassadas no Níger em março e em setembro no Sudão.
Foi, precisamente, em Setembro que o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, manifestou a sua preocupação perante a Assembleia Geral das Nações Unidas e reiterou que “os golpes militares [em África] estão de volta”.
Os registos históricos comprovam que o continente Africano produz o maior número de golpes de Estado desde a década de 1960. O primeiro, ainda em pleno processo de descolonização, ocorreu no Togo, em 1963, e a tendência foi crescente até 2010.
As reivindicações de progresso democrático em África são amplamente sobrevalorizadas. Se a última década sugeria uma abertura aos processos democráticos, desde 2019 assiste-se a um retrocesso. Pelo que uma descrição mais precisa da democracia no continente é a de um passo à frente, seguido de dois passos atrás.
Apesar das particularidades de cada caso, constata-se que na maioria dos países africanos o golpe de Estado é o habitual processo de transição política.
De forma geral, os países africanos comportam as condições ideais para a ocorrência e recorrência de processos subversivos, sejam eles golpes de Estado, guerras civis ou guerras, ditas convencionais.
A escassez de recursos naturais, potenciada pelas alterações climáticas, os diversos problemas demográficos, mas também a falta de recursos humanos qualificados, a incapacidade política dos dirigentes, sem esquecer os problemas tribais e fronteiriços herdeiros do colonialismo europeu, são problemas que não desvanecem com a introdução de mecanismos democráticos. Acabam até por ser acentuados com a implementação de projectos de transição democrática desadequados, traduzindo-se em dinâmicas concorrentes e coexistentes, como, por exemplo, a alternância entre eleições regulares e fraudes eleitorais; a coexistência da institucionalização democrática e da corrupção endémica; a consagração do pluralismo político e a emergência de uma sociedade civil que contrastam com a permanência da violência étnica e tribal; o crescimento económico e a imutabilidade das desigualdades socioeconómicas, contribuindo, assim, para o desgaste das ambições democráticas no continente africano.
Os golpes de Estado surgem então como alternativa quando o processo democrático falha, não devendo ser vistos como uma tentativa de resposta aos problemas estruturais supramencionados, mas antes como uma tentativa de mudança da sede e orientação do poder político.
Deste modo, os golpes de Estado contribuem para a fragilização das já débeis sociedades africanas, mas também para a desacreditação dos processos democráticos. Não só a democracia não se consegue consolidar como as democracias consolidadas não conseguem resistir. E assim, os golpes de Estado são, e continuarão a ser, uma constante num continente em que a democracia é um estrangeiro.
João Maria Lourenço Vieira
*Estagiário do Observatório do Mundo Islâmico e mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais na FCSH, da Universidade NOVA de Lisboa
Fotografia | Mahmoud Hjaj / Agência Anadolu