Comunidade do Bangladesh em Portugal: três décadas de luta pela integração

Um apartamento onde cabiam 35 pessoas — era assim o espaço que primeiro acolheu o Centro Islâmico do Bangladesh, na Mouraria, em Lisboa. Decorria então o ano 2000. Rana Uddin, o fundador deste espaço de oração, já vivia em Portugal desde o início da década de 1990, tendo percebido, desde logo, o potencial de crescimento desta comunidade, que começava a revelar a sua capacidade de união e entreajuda.

O apartamento de 35 pessoas depressa se estendeu a outra sala, para 80 pessoas. Acabou por ocupar o prédio todo, já com capacidade para acolher 240 pessoas.

“De repente, junta-se muita gente naquela zona com uma indumentária muito característica, o que gerou receio entre os vizinhos e a polícia. Ainda por cima, coincidiu com a queda das torres gémeas em Nova Iorque”, relembra Rana Uddin.

A curiosidade começou a voltar-se para esta comunidade, o que acabou por resultar em várias reportagens, filmes e até livros. O objetivo passava por ajudar a desmistificar as ideias sobre a comunidade muçulmana, “mostrando que não são terroristas, nem radicais”, conta Rana Uddin.

Passados todos estes anos, numa altura em que Portugal acolhe entre 60 a 70 mil bangladeshis, é, pois, com preocupação que olha para a decisão de um movimento de extrema-direita de organizar uma manifestação, na zona da Mouraria e do Martim Moniz, contra a islamização. Afirma que ações como esta, planeada para o dia 3 de fevereiro, mostram que a islamofobia — um fenómeno global — também existe em Portugal.

“Encaram a comunidade muçulmana como se não fosse civilizada, e afastam-se. A solução é unir a comunidade”, defende, ciente de que este não é um contexto fácil. Demonstra-se, porém, firme na sua posição de que a comunidade do Bangladesh não irá entrar em confrontos.

Praça Mouraria, um projeto votado ao esquecimento

A resistência a uma presença mais efetiva da comunidade, que se foi juntando nesta zona de Lisboa, o seu epicentro na Rua do Benformoso, tornou-se mais evidente com o projeto da nova Praça Mouraria.

Este plano nasceu há mais de 10 anos, em 2013, altura em que António Costa assumia as funções de Presidente da Câmara Municipal. Prometeu uma mesquita para a zona da Mouraria, que chegou mesmo a ter um local definido: uns armazéns na Rua da Palma. Mas a contestação não tardou, não só com a apresentação de queixas e a recolha de assinaturas, mas também com os entraves criados pelo empresário que teria de sair dos dois prédios.

Outros presidentes de câmara se seguiram, mas nada mudou. “A Mesquita é um assunto sensível e os políticos têm medo de assumir responsabilidades, mas a comunidade não constitui nenhum problema. Não há radicalismo político e a comunidade contribui para a economia nacional”, frisa Rana Uddin.

Este é um projeto que tem sido acompanhado de perto por José Mapril. Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), da Universidade Nova de Lisboa, estuda a comunidade do Bangladesh em Lisboa desde 2003. Nesse ano, dava os primeiros passos da sua tese de doutoramento, concluída em 2008 com o título “A ‘Modernidade’ do Sacrifício Qurban, Lugares e Circuitos Transnacionais entre Bangladeshis em Lisboa”.

“Quando comecei a investigar, a comunidade do Bangladesh não era tema”, recorda o Professor José Mapril. A partir da discussão do projeto da Praça Mouraria, começaram a surgir suspeitas, acusações e alguns pânicos morais, conta. E acrescenta: “Há um crescente sentimento de hostilidade relativamente a este contexto.”

Este discurso de hostilidade, de que estes imigrantes têm valores radicalmente diferentes da sociedade portuguesa, estende-se aos demais imigrantes oriundos da Ásia do Sul: do Nepal, da Índia ou do Paquistão, por exemplo. O sentimento de hostilidade tem crescido e parece que impera, cada vez mais, um olhar de suspeição, revelando “desconhecimento e ignorância”, refere José Mapril, a propósito do impacto do projeto para a Mouraria.

Ao projetar uma mesquita para a Praça, que seria um local de oração para muçulmanos, criou-se uma ideia de “islamização da cidade”. Decorre daí a contestação a este projeto. “Um sentimento que se aprofunda à medida que cresce, também, a agenda populista no espectro político em Portugal, decalcado da agenda de partidos políticos europeus de extrema-direita”, afirma o professor da FCSH da Universidade Nova. Isto apesar do aumento da discriminação e da intolerância.

Largo do Intendente, Lisboa, Comunidade Bangladesh
Largo do Intendente, Lisboa

Uma população com vários problemas

Ao contrário da ideia que se vai formando, José Mapril defende que a comunidade fez um esforço de integração ao longo dos últimos anos. Evidenciam preocupação com a educação dos filhos, a título de exemplo, que frequentam a escola pública e privada. Além disso, esforçam-se para aprender a língua, frequentando cursos de português para cidadãos estrangeiros. “Houve a preocupação de estabelecer ligações linguísticas, educacionais e de cidadania, sendo que se preocupam em participar na esfera pública. Não vivem fechados”, constata.

Neste quadro, Rana Uddin evidencia alguns números. Refere que mais de 25 mil imigrantes do Bangladesh têm nacionalidade portuguesa e que 50 mil são contribuintes ativos no nosso país. Uma comunidade que não trabalha apenas na indústria agrícola e nas plataformas digitais de transporte e de entrega de comida, mas que investe em negócios de restauração, importação e exportação, lojas de retalho ou imobiliário. “O contributo dos bangladeshis para a economia portuguesa continua a aumentar”, declara o líder do Centro Islâmico do Bangladesh.

E a sua presença no tecido social também se vai aprofundando. Das 56 mesquitas existentes em Portugal, 14 são da comunidade do Bangladesh, que também dinamiza quase três dezenas de associações espalhadas pelo país.

A crescente presença no país, bem como a rede de apoio que já consegue assegurar, não tem invalidado o incremento dos problemas que esta comunidade enfrenta atualmente. É o caso da habitação. Os recém-chegados deparam-se com uma enorme dificuldade em encontrar casa. Vivem, por isso, em apartamentos sobrelotados, muitas vezes sem condições. Além disso, descreve José Mapril, lidam com situações de precariedade e exploração laboral, tanto na agricultura como no trabalho para as plataformas digitais.

Se quando começou a sua investigação para a tese de doutoramento, a comunidade do Banglandesh não era tema, hoje, diz, o panorama revela-se muito preocupante. “A retórica de intolerância agudizou-se nos últimos anos, com a politização da retórica anti-imigração e anti-muçulmanos.”

Por esse motivo, considera ser muito importante concretizar o projeto da Praça Mouraria. Com este projeto, será possível reforçar a importância da multiplicidade de atores na comunidade portuguesa, contribuindo para o reconhecimento da diversidade cultural e religiosa.

O percurso de uma comunidade

Anos 1990

A comunidade do Bangladesh começa a chegar a Portugal. Em 1993, muitos bangladeshis vêm de outros pontos da Europa e aproveitam as oportunidades de emprego e de cidadania. Por esta altura, alguns abrem o seu próprio negócio, enquanto outros trabalham como vendedores ambulantes. No final da década, surge a União Cultural do Bangladesh.

 

Anos 2000

A comunidade soma mais de seis mil pessoas, que se enraízam e espalham pelo país. Muitos são vendedores ambulantes em feiras, caso da Guarda, da Covilhã, do Porto, de Guimarães, de Viana do Castelo, mas também do Algarve. Com a crise do subprime, no final da década, os seus negócios ressentem-se. Assiste-se, então, a uma relocalização desta comunidade para outros pontos da Europa.

Anos 2010

O aumento do turismo em Lisboa acaba por atrair novos membros da comunidade, que, com os que ficaram, se dedicam aos negócios do turismo. Abrem, por exemplo, lojas de souvenirs. Existindo, já, uma geração com algum capital, aproveitam os espaços que estavam abandonados há décadas na baixa e abrem, também, mercearias de bairro e restaurantes. Além disso, mantêm as lojas grossistas e de conveniência.

Anos 2020

Antes da pandemia de COVID-19, registou-se uma crescente chegada de bangladeshis, assim como de indianos e paquistaneses, que se espalharam pelo país para trabalhar na agricultura industrial para exportação. Após a pandemia, o crescimento das plataformas digitais, na área do transporte e da entrega de comida, atraiu ainda mais cidadãos do Bangladesh. A comunidade apresenta um quadro muito diversificado, juntando famílias que estão em Portugal há 30 anos, comerciantes e trabalhadores das plataformas. A estes, juntam-se estudantes de pós-graduação e de doutoramento, sobretudo na área das engenharias.