“O contexto geopolítico dos BRICS, tal como o conhecemos hoje, vai muito além da referência económica inicial do acrónimo e requer um amplo debate sobre a multiplicidade de interesses, prioridades e a complexidade dessa parceria estratégica”, afirmou o Presidente do Observatório do Mundo Islâmico, Professor José Esteves Pereira, na abertura da conferência que decorreu no passado dia 27 de fevereiro, organizada em parceria com o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).
De facto, a diversidade e a complexidade na parceria estratégica que envolve o grupo dos BRICS foi alvo de reflexão nas várias apresentações desta conferência, intitulada “O Alargamento dos BRICS: Um novo fator de mudança na geopolítica mundial?”. Aos cinco países que formam o acrónimo — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — juntaram-se mais cinco, que fazem parte da organização desde o início do ano: Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irão. Destes novos países, quatro fazem parte do mundo islâmico, como lembrou João Henriques, vice-presidente do Observatório do Mundo Islâmico.
Ora, além das naturais implicações económicas, que impacto terá este alargamento na dinâmica geopolítica global? Que reação provoca noutros blocos de países, num quadro internacional cada vez mais multipolar? E que reflexos terá no domínio dos EUA e do dólar? A coordenação diplomática global passará pela reconfiguração do Conselho de Segurança das Nações Unidas?
O peso dos BRICS
Antes de mais, importa analisar a relevância deste bloco. Os números foram referidos, desde logo, pela primeira responsável diplomática a intervir na conferência, Mmamokwena Gaoretelelwe, Embaixadora da África do Sul em Portugal. “Atualmente, os países do BRICS representam quase metade da população mundial e 40% do seu consumo de energia. E, claro, o orçamento de todos os países do BRICS atinge biliões, o que os torna num bloco formidável.”
Pela sua dimensão e pelos recursos que engloba, este bloco, que assume os princípios do chamado Sul Global, terá um papel incontornável em vários domínios, destacou ainda a Embaixadora da África do Sul. Uma afirmação sublinhada, também, pelo Embaixador do Irão. Seyed Majid Tafreshi frisou, por isso, que os BRICS, enquanto fórum internacional, não devem ser encarados como um perigo ou como um novo fenómeno que surge contra outra qualquer entidade. Devem, sim, ser olhados como benéficos para a economia global. E acrescentou alguns dados: os países do bloco representam 25% do PIB e 80% da economia mundiais.
Ciente de que vivemos numa economia politizada, Seyed Majid Tafreshi alertou para a possibilidade de se denotarem divergências. E o caso de Gaza é prova disso. Contudo, ao ajudar a economia internacional, o Embaixador do Irão acredita que os BRICS vão ser capazes, também, de trazer segurança quer aos seus países, quer aos países vizinhos.
“O importante é que o Irão, a Arábia Saudita e outros, em vez de terror, guerra e refugiados, pretendem receber mais investidores, turismo e paz”, defendeu Seyed Majid Tafreshi, justificando a importância de aplaudir e apoiar os BRICS.
O tema revela-se, também, inquestionável para a Rússia. Por conseguinte, o adido da Embaixada da Rússia presente na conferência, Aleksei Chekmarev, preferiu retirar o ponto de interrogação do tema da conferência. “O mundo não pode desenvolver-se sem os BRICS” e, como tal, a aposta da Rússia, que este ano assume a presidência do bloco, é trabalhar no sentido de adaptá-lo a um novo formato de cooperação, sem perder o foco operacional inicial.
Representante do país que se seguirá na presidência dos BRICS, em 2025, João Paulo Ortega Terra, Ministro-Conselheiro da Embaixada do Brasil, reiterou por sua vez a importância deste fórum — que não é exclusivo, como se vê pelo recente alargamento, mas que também não exclui outros fóruns. Pelo contrário, os BRICS “contribuem com ideias construtivas sobre os desafios que mais afetam o mundo” e promovem “uma organização mais representativa e justa da ordem internacional”.
Um bloco muito diverso
Este caminho não esconde a heterogeneidade dos BRICS, que foi destacada ao longo das várias intervenções na conferência. Afinal, incorporam realidades e situações bem diferentes, mas também estratégias económicas e geopolíticas, bem como interesses, diversos.
Luís Filipe Menezes, presidente da Câmara de Comércio e Indústria Árabe-Portuguesa, verbalizou essas diferenças, questionando a coexistência de alguns países nos BRICS: por exemplo, o Irão e a Arábia Saudita, com objetivos políticos e geoestratégicos bem diferentes, ou a China e a Índia, que coexistem numa saudável rivalidade no crescimento. Acabou, depois, por concluir que a globalização foi determinante para a criação do bloco: os BRICS são uma reação a uma visão do mundo imposta pelos EUA e pela Europa, “são filhos da má globalização e, paradoxalmente, também filhos dos seus side effects positivos, caso do crescimento económico generalizado”.
Embora as realidades sejam visivelmente distintas, a procura de soluções para problemas comuns consiste num fator de união dos BRICS. Tal é o caso da “desdolarização”, como lembrou Carla Costa, professora do ISCSP. O objetivo de se afastarem do dólar americano como moeda de referência, a favor das moedas locais, revela-se transversal aos vários BRICS, nomeadamente em prol do renminbi chinês ou da rúpia indiana.
Ainda que a predominância do dólar não esteja em causa no curto prazo, Carla Costa explica que o cenário pode mudar. “A aplicação de sanções pode conduzir à saída do dólar em detrimento de outras moedas”, salientou a professora do ISCSP.
Outro fator capaz de unir os BRICS é o desafio do desenvolvimento sustentável, como destacou Raquel Patrício, também professora no ISCSP. Esta é uma área em que os interesses da China e da Índia podem alinhar-se e, se conseguirem criar e aprofundar uma ordem comum alternativa ao atual sistema de governação do clima, “as semelhanças podem superar as fricções — fricções essas que um dia podem ameaçar diminuir a sua capacidade de criar uma nova ordem alternativa coerente no mundo”.
Por outros palavras, esta foi também a mensagem deixada por Bernardo Mendia, Secretário-Geral da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Chinesa (CCILC): os interesses são o motor deste tipo de organizações e é por isso que o mais recente alargamento, e os cenários futuros que podem daqui emergir, não constituem necessariamente um entrave.
“Os BRICS são uma iniciativa muito positiva, porque representam a organização de interesses e os interesses são fundamentais para alcançarmos alguma ordem”, afirmou Bernardo Mendia, acrescentando que os BRICS são, de facto, uma “entidade importante”.
O crescimento dos BRICS
A verdade é que a forte diversidade não tem impedido os BRICS de crescer. “Trinta e quatro países já manifestaram o seu interesse em aderir a este bloco que congrega as principais economias emergentes, numa lista que inclui países de África, da América do Sul e da Ásia, que, definitivamente, pretendem reduzir a sua dependência da moeda americana”, lembrou João Henriques.
Na lista de potenciais candidatos poderá figurar um outro país islâmico e um gigante do sudeste asiático que, curiosamente, ainda não faz parte do grupo: a Indonésia. Analisando com detalhe o posicionamento deste país, Nuno Canas Mendes, presidente do Instituto do Oriente, explicou que este ainda não formalizou o pedido porque “não quer apressar a entrada e prefere estudar os benefícios de uma adesão”. No entanto, considerou que será uma questão de tempo até que este país, que é também um rival económico da China, entre nos BRICS e amplifique a sua voz no mundo.
Os próprios BRICS sabem que não conseguem ir muito longe sem a Indonésia, acrescentou também Rui Cardoso, jornalista especialista em política internacional na sua intervenção. Lembrou também outros países islâmicos que ainda não fazem parte do grupo, como a Turquia e o Qatar. Apesar dos muitos pontos de interrogação que podem ainda existir, considerou que os BRICS devem ser levados a sério. Tanto mais que as organizações saídas da II Guerra Mundial mostram não estar à altura dos desafios atuais.
Independentemente dos países que aderiram e dos que ainda faltam aderir, o potencial económico dos BRICS deve ser aproveitado desde já, como frisou Bernardo Mendia. Do seu ponto de vista, importa dar primazia ao potencial económico que provém deste bloco, sendo certo que as questões políticas e diplomáticas se seguirão. Mais do que isso, sabendo que as discordâncias são inevitáveis, o facto de haver uma organização como os BRICS significa que os interesses estão organizados e, como tal, “é mais fácil negociar nestas condições”.
Por isso, Bernardo Mendia não tem dúvidas de que Portugal deve trabalhar com os BRICS e os demais para tornar a globalização mais bem-sucedida, de modo que mais países — e cada vez mais pessoas — possam beneficiar dela.